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A reforma tributária do Séc. XXI (EC132), corte epistemológico para uma nova Dogmática: novo objeto, novos fundamentos e novos princípios

Eurico Marcos Diniz de Santi

Por Eurico Santi

  1. Reforma Tributária do Brasil: nova Dogmática?  

A Reforma Tributária nos propõe o desafio de uma nova Dogmática? Qual o objeto desta nova dogmática? Vivemos uma ruptura em relação à tradição Dogmática do direito tributário no Brasil? Como relacionam-se princípios e regras na nova ordem constitucional instaurada pela EC 132/2023

Denominamos “Dogmática Jurídica”, em sentido estrito, ao discurso descritivo do direito com pretensões científicas sujeito a controle de veracidade e, portanto, passível de ser refutado em razão das premissas que demarcam seu objeto de análise (objeto-material). Pode-se obter as teorias T’, T’’, T’’’, constituintes de subdomínios distintos a partir de objetos derivados de cortes lógicos e epistemológicos diversos: o dado-material uno multiparte-se em diversos objetos-materiais.”.

Estamos diante de uma nova Dogmática que exibe novo objeto e nova relação entre os princípios e as regras positivados na EC 132/2023. Não há, entretanto, ruptura com o discurso Dogmático do atual acumulado nos últimos  50 anos. O problema da Dogmática atual é a complexidade de seu objeto: o sistema atual (ISS, ICMS, PIS, COFINS, IPI) demanda análise de 2,1 bilhões de cenários tributários (unidade informática que expressa a múltipla combinação das regras vigentes).

Somos anões que subimos aos ombros de gigantes. A Reforma Tributária do século XXI assimilou a exponencial evolução da dogmática do direito tributário desenvolvida no Brasil, em especial da Escola Analítica, que ofereceu inúmeros instrumentos para análise e compreensão interdisciplinar do direito, integrando saberes, tais como: o “Neopositivismo Lógico” (primeiro Wittgenstein); o “Giro Linguístico”, (segundo Wittgenstein e Flusser); a “Lógica Jurídica” (Von Wright, Alchourrón e Bulygin, Ricardo Guibourg, Daniel Mendonca, Pablo Navarro e Lourival Vilanova); a “Teoria Pura do Direito” (Hans Kelsen), a “Teoria dos Sistemas” (Luhmann, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Geraldo Ataliba, Bandeira de Mello e Marcelo Neves); a “Teoria Geral do Direito” (Pontes de Miranda, Souto Maior Borges, Maurício Adeodato e Torquato Castro); a “Semiótica” (Peirce e Santaella), a “Linguística Geral” (Ferdinand de Saussure); a “Teoria da Enunciação” (José Luiz Fiorin); a “Regra-matriz de Incidência” (Paulo de Barros Carvalho, pai do Constructivismo Lógico-Semântico) e da “Teoria dos Princípios versus Regras” (com Hart, Dworking, Schauer, Alexy, Ricardo Lobo Torres, Roque Carrazza, Marco Aurélio Greco e Alcides Jorge Costa).

[1] Objeto-material é o resultado da delimitação arbitrária e subjetiva (válida para este universo do discurso) do dado-material para efeito da constituição do objeto-material (conjunto de normas jurídicas CBS/IBS) que serão descritas, formando o sistema de proposições normativas CBS/IBS.
[2] VILANOVA, Lourival. Norma jurídica – proposição jurídica. (significação semiótica). Revista de Direito Público: São Paulo, 1982, (XV) 61: 12-33. p. 13.
[3] Dados oferecido por Lucas Ribeiro, CEO da ROIT (empresa de tecnologia focada na implementação da Reforma Tributária). Segundo Ribeiro, o novo Sistema CBS/IBS com lei complementar única e alíquota uniforme apresentará, em 2023, aproximadamente 22,5 milhões de “cenários tributários”.

Pode-se afirmar, categoricamente, que todo o processo de construção da Reforma Tributária foi informado pelas mais diversas vertentes da Dogmática Tributária nacional. Trata-se de “resultado – bem ao estilo  de Franz Kafka – de quem desperta do “sonho (ou pesadelo) dogmático”, orientado pelo estudo profundo das formas jurídicas para enxergar as deformidades do direito e da tributação no Brasil”, conforme registramos no livro “Kafka, Alienação e Deformidades da Legalidade: Exercício do Controle Social Rumo à Cidadania Fiscal” (2014) , obra referencial do movimento “Nossa Reforma Tributária”. 

  1. Novo objeto-material da nova Dogmática: voluntas legis ou voluntas legislatoris 

A Dogmática dirigida à interpretação do novel Sistema Tributário Nacional instaurado pela EC 132/2023 exige, como primeiro passo, a identificação de seu objeto. Tradicionalmente, a doutrina tradicional cinde-se em duas correntes conforme o reconhecimento: (i) ou “da vontade do legislador”; (ii) ou “da vontade da lei”.

A doutrina subjetivista (vontade do legislador) propõe uma interpretação ex tunc “desde então”, isto é, desde o aparecimento do texto legal pela positivação da vontade do legislador; ressalta o papel preponderante do aspecto genético, do recurso ao método histórico de interpretação, aos documentos e às discussões preliminares dos responsáveis pela positivação do texto legal. 

Diversamente, a doutrina objetivista (vontade da lei) propõe uma interpretação ex nunc “desde agora”, isto é, destaca como objeto o texto legal objetivado no ato final do processo legislativo; argumenta que uma “vontade” do legislador é mera ficção, pois o legislador raramente é uma pessoa fisicamente identificável. 

[4] Kafka, Alienação e Deformidades da Legalidade, p. 29.
[5] https://www.euricosanti.com.br/kafka-alienacao-e-deformidades-da-legalidade-exercicio-do-controle-social-rumo-a-cidadania-fiscal
[6] A origem da PEC 45 surgiu de novo paradigma proposto pelo Núcleo de Estudos Fiscais da FGV DIREITO SP, inaugurado pelo projeto “Nossa Reforma Tributária” (2014), segundo o qual o protagonismo do modelo e do desenho jurídico da Reforma Tributária deveria nascer da sociedade civil organizada.

Não há texto sem contexto. É falso afastar toda subjetividade, amplamente documentada e objetivada sobre o legislador racional, o legislador normativo e o legislador real, em  busca da simplória busca da chamada vontade objetiva da lei (voluntas legis). 

Adverte Karl English, que os intérpretes estáticos do texto legal, sem as marcadas da enunciação legislativa, restam também sujeitos a dúvidas interpretativas: os objetivistas criaram, no fundo, um curioso subjetivismo que põe a vontade do intérprete acima da vontade do legislador, tornando-se aquele não apenas “mais sábio” que o legislador, mas também “mais sábio” que a própria norma legislada; seguindo nesta linha, experimentaríamos sério desvirtuamento da captação do sentido do direito em termos de segurança e de certeza, pois ficaríamos à mercê da opinião subjetiva do intérprete.   

A nova Dogmática sobre os textos da EC 132/2023 e da LC 214/2025, deve considerar todo o percurso narrativo do debate público e o do processo decisório que orientaram, no decorrer de mais de 10 anos, a formação destes diplomas normativos, mediante debate público, aberto, transparente e amplamente registrado em documentos, eventos e vídeos gravados entre 2014 e 2025, disponíveis publicamente no ciberespaço da internet.

Elege-se, portanto, para fins científicos específicos desta moderna Dogmática sobre a Reforma Tributária, os seguintes textos (e contextos) que devem ser levados em conta para interpretar e construir as normas jurídicas pertinentes a este novel arcabouço jurídico:   

  1. Texto original elaborado pelo CCIF a pedido do Presidente da Câmara (Rodrigo Maia) e proposto como PEC45 pelo Deputado Baleia Rossi;
  2. Texto e exposição de motivos da PEC45 aprovada na CCJ, em maio/2019, relatado pelo Dep. João Roma.
  3. Relatório da PEC45 da Comissão Mista (Câmara/Senado) elaborado pelo Deputado Aguinaldo Ribeiro; 
  4. Texto das Notas Técnicas elaboradas pelo Centro de Cidadania Fiscal – CCiF, entre 2015 e 2025, devidamente publicadas no site https://ccif.com.br/
  5. PEC Brasil Solidário (elaborada conjuntamente com o CONSEFAZ); 
  6. Relatório da PEC110 elaborado pelo Senador Roberto Rocha; 
  7. Relatório do Grupo de Trabalho (GT) liderado pelos Deputados Aguinaldo Ribeiro e Reginaldo Lopes; 
  8. Relatório da PEC45 aprovado no plenário da Câmara dos Deputados, em julho/2023;
  9. Relatório da PEC45 aprovado no Senado Federal, em dezembro/2023, sob a relatoria do Senador Eduardo Braga; 
  10. Texto e exposição de motivos da EC 132/2023 promulgada pela Câmara dos Deputados, em dezembro/2023;
  11. Texto e exposição de motivos do PLP68/2024, apresentado pela SERT e resultado dos grupos de trabalho do PAT-RTC, em março/2024;
  12. Texto e exposição de motivos do PLP108/2024, apresentado pela SERT e resultado dos grupos de trabalho do PAT-RTC, em abril/2024;
  13. Texto e exposição de motivos do PLP68/2023, aprovado na Câmara dos Deputados, em setembro/2024;
  14. Texto e exposição de motivos do PLP68/2023, sob a relatoria do Senador Eduardo Braga, aprovado em dezembro/2024,
  15. Texto e mensagem de vetos que resultou da Sanção Presidencial da Lei Complementar 214/2025; e 
  16. Texto aprovado, exposição de motivos e mensagem de vetos que resultar da aprovação do PLP 108/2023.

[7] Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Introdução ao Estudo do Direito, pp. 241.
[8] Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Introdução ao Estudo do Direito, pp. 242-3.
[9] Cf. Lilia Schwarcz, artigo no UOL “100 dias que mudaram o mundo”  https://www.uol.com.br/universa/reportagens-especiais/coronavirus-100-dias-que-mudaram-o-mundo/#cover

  1. Sistematização dos novos fundamentos e princípios que orientam a reforma tributária do Brasil

Os fundamentos e intuições que orientaram o movimento “Nossa Reforma Tributária” encontram-se no livro “Kafka, Alienação e Deformidades da Legalidade”, publicado em dezembro de 2014. Os 9 Capítulos iniciais deste livro sistematizam as principais patologias (“deformidades”) da prática do direito tributário que fomentam a “indústria do contencioso”, bem como as pesquisas realizadas pelo Núcleo de Estudos Fiscais da FGV DIREITO SP, entre 2009 e 2014. 

Na 10ª Conclusão do Capítulo 10 (Diretivas institucionais: não basta arrecadar, desafios para melhorar o Brasil, criando ambiente de negócios, segurança jurídica e competitividade), , sob a epígrafe “A simplicidade é a maior das sofisticações” (Leonardo Da Vinci), sugere-se nova e disruptiva forma de se propor uma Reforma Tributária cidadã:

A reforma do sistema tributário federal, estadual e municipal não admite fórmula única e acabada. (…)

É momento de repensar modelos do século passado que delegaram o dever de interpretar para o contribuinte. É hora de avançar sobre novas tecnologias em que a mera informação do fato gerador permite o oferecimento de uma guia nacional para o pagamento de todos os tributos incidentes de forma integrada. O amanhã chegou: representantes da sociedade civil, professores, advogados e, em especial, os servidores públicos que atuam nas três esferas do fisco nacional serão os grandes protagonistas das mudanças de que tanto precisamos para nos modernizarmos e nos tornarmos os melhores do mundo: sim, melhorar o Brasil. Nós podemos!

Na primeira Nota Técnica do Centro de Cidadania Fiscal, encontra-se os “princípios-fundantes”, fixados em meados de 2015 e posteriormente absorvidos pela NT n. I, vs 2.2 de julho 2019, “Reforma do Modelo Brasileiro de Tributação de bens e serviços”: 

Simplicidade indica facilidade e segurança jurídica para o contribuinte pagar seus tributos e cumprir suas obrigações acessórias, reduzindo as divergências na interpretação da legislação, que são a causa principal do contencioso tributário. 

Transparência para que os contribuintes saibam quanto estão pagando de impostos, dando visibilidade à complexa relação entre direito, economia e política, de modo a empoderar o verdadeiro titular do ônus da carga tributária – o cidadão – e aprofundar o exercício da cidadania fiscal nas eleições. 

Neutralidade para que a tributação sobre o consumo não crie distorções no ambiente de negócios, permitindo a eficiente alocação do investimento e prevenindo a entropia do planejamento tributário. 

Enfim, a equidade do sistema tributário indica que a tributação deve garantir o tratamento equivalente de pessoas e negócios em situações semelhantes. 

Afinal, simplicidade, transparência, neutralidade e equidade são instrumentos para realizarmos nosso processo civilizatório, rumo à igualdade que dignifica e justifica a própria noção de direito”.

É surpreendente notar a coerência entre os “princípios-fundantes”, as “regras-fundantes”, os “princípios-estruturantes” (positivados na EC 132/2023”. no Art. 145, § 3º e no Art. 156-A, § 1º) e as “regras-estruturantes” (constitucionalizadas, em especial, nos artigos 159-A e 159-B, da CF88).  

[10] Idem, ibidem, p. 592.
[11] https://ccif.com.br/notas-tecnicas/
[12] “É hora da reforma da qualidade da tributação sobre o consumo”. Artigo publicado no jornal eletrônico o JOTA, no dia 13 de abril de 2016. 

  O quadro abaixo relaciona as novas regras balizadoras da competência para instituir CBS/IBS e os princípios positivados na CF88:

Regras-fundantesRegras-estruturantesPrincípios-estruturantes
Fato gerador e base amplaArt. 156-A, § 1º, I e IISimplicidade (Art. 145 § 3º)Justiça tributária (Art. 145 § 3º)
Legislação únicaArt. 156-A, § 1º, IVArt. 156-A, § 3ºSimplicidade (Art. 145 § 3º)Justiça tributária (Art. 145 § 3º)
Alíquota padrãoArt. 156-A, §1º, VISimplicidade (Art. 145 § 3º)Transparência (Art. 145 § 3º)Justiça tributária (Art. 145 § 3º)
Alíquota por foraArt. 156-A, §1º, IXTransparência (Art. 145 § 3º)Justiça tributária (Art. 145 § 3º)
Proibição de incentivos fiscais sem fundamento constitucionalArt. 156-A, § 1º, XSimplicidade (Art. 145 § 3º)Transparência (Art. 145 § 3º)Neutralidade (Art. 156-A § 1º)
Não incide sobre exportaçõesArt. 156-A, § 1º, IIISimplicidade (Art. 145 § 3º)Transparência (Art. 145 § 3º)Neutralidade (Art. 156-A § 1º)
Direito a crédito amploArt. 156-A, § 1º, VIIIArt. 156-A, § 5º, IISimplicidade (Art. 145 § 3º)Transparência (Art. 145 § 3º)Neutralidade (Art. 156-A § 1º)Não-cumulatividade (Art. 145 § 3º)
Documento fiscal únicoArt. 156-A, §1º, VIIArt. 156-A, § 1º, XIIISimplicidade (Art. 145 § 3º)Transparência (Art. 145 § 3º)Justiça tributária (Art. 145 § 3º)
Desoneração dos investimentos em bens de capitalArt. 156-A, § 5º, VSimplicidade (Art. 145 § 3º)Transparência (Art. 145 § 3º)Neutralidade (Art. 156-A § 1º)Não-cumulatividade (Art. 145 § 3º)
Devolução automática dos créditos acumuladosArt. 156-A, § 5º, IISimplicidade (Art. 145 § 3º)Neutralidade (Art. 156-A § 1º)Não-cumulatividade (Art. 145 § 3º)Justiça tributária (Art. 145 § 3º)
Federalismo Cooperativo e Comitê GestorArt. 156-A, § 1º, V e VIArt. 156-A, § 4º, I e IIArt. 156-A, § 5º, IV156-B, I, II II. § 1º a § 8ºSimplicidade (Art. 145 § 3º)Transparência (Art. 145 § 3º)Neutralidade (Art. 156-A § 1º)Cooperação (Art. 145 § 3º)
Garantia de transição sem aumento de carga tributáriaArt. 156-A, § 1º, XIISimplicidade (Art. 145 § 3º)Transparência (Art. 145 § 3º)Neutralidade (Art. 156-A § 1º)Cooperação (Art. 145 § 3º)

[13] Nota Técnica CCiF NT n. I, vs 2.2 de julho 2019: https://ccif.com.br/notas-tecnicas/


Eurico Santi é parecerista, consultor, mestre, doutor (PhD), professor da FGV, ganhou o Prêmio Jabuti, fundador do CCIF e do NEF/FGV, e co-autor intelectual da PEC45 (Emenda Constitucional 132): a reforma tributária do Brasil.


Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.

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