
1. Introdução
O Brasil, ao aprovar a Emenda Constitucional 132/2023, deu um passo histórico ao adotar um modelo de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual, reconhecendo a necessidade de modernizar sua complexa estrutura tributária sobre o consumo.
Com a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartilhada entre estados e municípios, e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal, o país se alinhou aos modelos internacionais mais avançados de tributação do consumo. Essa escolha foi clara: dois tributos distintos, mas concebidos para funcionar como gêmeos, de forma coordenada, dentro de um mesmo sistema.
No entanto, a regulamentação infraconstitucional trazida pelo PLP 108/2024, em sua versão original, não refletia plenamente essa escolha. Sob o argumento de que seria necessário preservar a autonomia dos entes federados, a proposta inicial mantinha uma visão fragmentada, que poderia comprometer os princípios fundamentais de um IVA moderno — simplicidade, transparência e neutralidade.
2. A lacuna na proposta original: autonomia versus integração
É natural que, em um país federativo como o Brasil, a autonomia de estados e municípios seja um valor a ser preservado. Contudo, no contexto de um IVA dual, a autonomia não pode significar desconexão.
A proposta original do PLP 108 reproduzia a lógica do sistema atual, em que cada ente público atua de forma isolada, com regras próprias, interpretações divergentes e sistemas independentes. Essa estrutura não permitiria que IBS e CBS funcionassem como tributos gêmeos, resultando em:
- Duplicidade de obrigações acessórias, aumentando os custos de conformidade para empresas;
- Risco de interpretações conflitantes, criando insegurança jurídica e fomentando litígios;
- Falta de interoperabilidade tecnológica, prejudicando a fiscalização e a arrecadação;
- Manutenção de uma experiência ruim para o contribuinte, que continuaria enfrentando complexidade excessiva.
Esse modelo isolacionista, embora justificável sob a ótica da autonomia federativa, ignora a essência de um IVA dual, que exige cooperação institucional entre os níveis de governo.
3. O relatório do Senador Eduardo Braga: avanços para um sistema cooperativo
O relatório recentemente apresentado pelo senador Eduardo Braga representa uma guinada significativa no debate. Embora não esteja livre de críticas e ainda haja espaço para ajustes até o momento da votação em Plenário, o texto propõe mecanismos concretos para harmonizar IBS e CBS, transformando-os em verdadeiros tributos gêmeos.
Entre os principais avanços, destacam-se:
3.1. Reconhecimento explícito do IVA dual
O relatório afirma, de forma inequívoca, que IBS e CBS são partes integrantes de um mesmo sistema de tributação sobre o consumo, devendo compartilhar regras e estruturas sempre que possível.
Essa mudança semântica e conceitual é fundamental para alinhar a regulamentação infraconstitucional à decisão política tomada na Constituição.
3.2. Comitê Gestor fortalecido e atuação conjunta
A criação de um Comitê Gestor com autonomia técnica e representatividade equilibrada traz uma governança inovadora.
O relatório propõe:
- Gestão compartilhada entre Receita Federal, estados e municípios;
- Mandatos fixos para representantes subnacionais, reduzindo interferências políticas;
- Definição clara de competências, permitindo que IBS e CBS sejam administrados de forma integrada.
Essa estrutura garante cooperação sem perda de identidade federativa, aproximando o Brasil de modelos bem-sucedidos em países federativos que adotam IVA.
3.3. Regras comuns para obrigações, penalidades e interpretação
Outro avanço essencial está na unificação das regras para IBS e CBS, criando um ambiente jurídico mais previsível.
O relatório prevê:
- Obrigações acessórias padronizadas, reduzindo custos para contribuintes;
- Sistema uniforme de infrações e penalidades, evitando tratamento desigual para situações idênticas;
- Criação da Câmara Nacional de Integração do Contencioso Administrativo, para solucionar divergências envolvendo ambos os tributos;
- Instalação de um Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias, responsável por interpretações uniformes.
Essa padronização aproxima o Brasil do conceito internacional de tributação neutra, em que o imposto não distorce decisões empresariais.
4. Tributação cooperativa: um novo paradigma
A essência de um IVA dual não está na soma de dois tributos distintos, mas na sua coordenação plena, garantindo que o sistema funcione como se fosse um só.
O relatório de Eduardo Braga materializa essa visão ao substituir a lógica de independência absoluta pela de cooperação institucional.Essa mudança beneficia tanto o Estado quanto a sociedade:
- Para o setor produtivo: reduz complexidade, melhora a previsibilidade e diminui custos de conformidade.
- Para os entes federativos: fortalece a arrecadação, aumenta a eficiência fiscal e reduz disputas entre governos.
- Para os cidadãos: garante maior transparência e equidade na tributação, permitindo que a carga tributária seja melhor compreendida e fiscalizada.
Trata-se de um passo essencial para que os princípios de simplicidade, transparência e neutralidade deixem de ser slogans e se tornem realidade.
5. Desafios e próximos passos
Apesar dos avanços, ainda existem desafios relevantes:
- Detalhamento de regras operacionais, especialmente em áreas de integração tecnológica;
- Uniformidade, simplicidade e rapidez nas soluções de disputas administrativas;
- Regras mais claras para devolução de pagamentos indevidos;
- Garantia de que a autonomia federativa não seja esvaziada, mas exercida dentro de parâmetros comuns;
- Definição de mecanismos de compensação para perdas de receita durante a transição;
- Monitoramento contínuo para evitar retrocessos que recriem a fragmentação do passado.
- Regras operacionais mais claras para o período de transição.
O texto do relatório deve ser aprimorado durante a tramitação, mas já estabelece fundamentos sólidos para a implementação prática do IVA dual.
6. Conclusão
O Brasil já tomou a decisão política de adotar um IVA dual. O desafio agora é transformar essa decisão em realidade operacional.
O relatório do Senador Eduardo Braga representa um marco nesse processo, ao propor mecanismos que viabilizam a integração entre IBS e CBS e consagram a tributação cooperativa como novo paradigma.
Mais do que uma vitória técnica, esse avanço sinaliza que o país está pronto para superar a lógica de fragmentação que marcou o sistema tributário nas últimas décadas.
Ao privilegiar simplicidade, transparência e neutralidade, o novo modelo pode impulsionar o desenvolvimento econômico, aumentar a competitividade das empresas e garantir uma arrecadação mais eficiente e justa.
Luiz Roberto Peroba é Sócio/Tax Partner no Pinheiro Neto. Assessora clientes nacionais e estrangeiros de diversas indústrias, tanto em consultoria/planejamento tributário como contencioso, em disputas administrativas e judiciais.
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