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Cobrança de tributos “por fora” e os efeitos nos contratos corporativos

Por Luiz Roberto Peroba

A reforma tributária do consumo, aprovada por meio da Emenda Constitucional nº 132/2023 e em fase de regulamentação por meio da LC nº 214/2025, introduz um modelo dual de IVA (IBS e CBS) que rompe com a lógica tradicional de incidência “por dentro” dos tributos sobre o consumo. Com a nova sistemática, os tributos passam a ser destacados “por fora” do preço da operação, gerando efeitos relevantes não apenas fiscais, mas também contábeis, contratuais e gerenciais.

Neste artigo, chamamos a atenção para um efeito prático ainda pouco discutido: a desconexão entre a nova definição de receita (sem os tributos) e as bases contratuais hoje vinculadas à receita bruta ou faturamento com tributos incluídos. A mudança afeta diretamente contratos de PLR (Participação nos Lucros e Resultados), bônus de executivos, comissionamentos de vendas e remunerações atreladas a métricas comerciais.

1.⁠ ⁠Da base “por dentro” à base “por fora”

Atualmente, a maior parte das empresas utiliza como referência a receita bruta com tributos incidentes (ISS, ICMS, PIS/COFINS) para definir metas e remuneração variável. Com a Reforma, a CBS e o IBS deixarão de compor essa base, reduzindo artificialmente o faturamento contabilizado, sem qualquer redução real da atividade empresarial ou dos valores cobrados dos clientes.

Esse recuo na base de cálculo pode gerar dois problemas imediatos:

•⁠ ⁠Desalinhamento contratual: contratos que atrelam pagamentos a metas de faturamento ou receita precisarão ser reinterpretados ou revisados, pois o mesmo desempenho poderá aparentar um resultado inferior;

•⁠ ⁠Custo adicional não previsto: caso não haja revisão contratual, a empresa poderá ser compelida a manter os pagamentos sobre a antiga base (por dentro), onerando indevidamente sua margem de lucro.

2.⁠ ⁠Contratos afetados: exemplos práticos

Entre os instrumentos jurídicos que demandam revisão destacam-se:

•⁠ ⁠Programas de PLR: grande parte dos acordos homologados junto ao sindicato utiliza metas de receita bruta ou crescimento de faturamento como parâmetro. Essa base precisará ser ajustada para refletir a nova definição contábil, sob pena de judicialização e perda de previsibilidade.

•⁠ ⁠Bônus e remuneração variável de diretores e executivos: estruturas de bônus atreladas a crescimento de receita ou market share tendem a ser afetadas pela alteração da base de cálculo, principalmente em setores com altas alíquotas (ex.: telecom, energia, digital).

•⁠ ⁠Comissões sobre vendas: vendedores e representantes comerciais frequentemente recebem comissões sobre o valor bruto da nota fiscal. Com o IBS e CBS destacados “por fora”, esse valor será reduzido, e a comissão precisará ser reavaliada.

•⁠ ⁠Contratos com terceiros baseados em “faturamento”: por exemplo, cláusulas de earn-out, royalties variáveis, repasses entre partes relacionadas e até cláusulas de exclusividade territorial podem se apoiar na métrica de faturamento bruto — agora distorcida se não houver atualização.

3.⁠ ⁠Riscos jurídicos e disputas potenciais

A ausência de revisão contratual pode provocar:

•⁠ ⁠Reclamações trabalhistas, disputas tributárias, previdenciárias e sindicais em relação à PLR e comissões;

•⁠ ⁠Litígios com executivos e prestadores de serviços, alegando redução indevida de base;
•⁠ ⁠Divergências societárias (ex.: avaliação de performance para fins de distribuição de lucros, valuation ou pagamento de dividendos preferenciais);

•⁠ ⁠Insegurança contábil e fiscal na classificação dos pagamentos.

Empresas devem se antecipar para evitar impactos financeiros desnecessários ou disputas jurídicas (i) mapeando todos os contratos e políticas internas com referência à “receita bruta”, “faturamento”, “vendas líquidas” ou base similar; (ii) Revisando os conceitos contratuais à luz do novo modelo “por fora” — propondo ajustes, aditivos ou notas explicativas que alinhem expectativas e preservem a neutralidade econômica da reforma; (iii) atualizando ERPs e controles internos para que os sistemas passem a refletir corretamente a distinção entre receita líquida de tributos e o valor total da operação; (iv) Conduzindo treinamentos internos e comunicação institucional, principalmente com times de RH, jurídico, contabilidade, compliance e área comercial; e (v) incluindo cláusulas de salvaguarda em novos contratos, prevendo cenários de mudança legal, alteração de base de cálculo e mecanismos de reequilíbrio contratual.

Conclusão

A Reforma Tributária trará ganhos relevantes de racionalidade, neutralidade e transparência, ao destacar os tributos do preço e da receita. Mas esse novo paradigma exige atenção redobrada dos departamentos jurídico e financeiro das empresas. Manter contratos antigos com base em uma noção de receita que deixará de existir pode gerar um efeito colateral perverso: comprometer margens, gerar disputas e penalizar empresas justamente no momento de transição do novo sistema. A revisão contratual é, portanto, não só prudente, mas essencial.


Luiz Roberto Peroba é Sócio/Tax Partner no Pinheiro Neto. Assessora clientes nacionais e estrangeiros de diversas indústrias, tanto em consultoria/planejamento tributário como contencioso, em disputas administrativas e judiciais.


Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.

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