
Por Ana Claudia Borges de Oliveira
O Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 108, é o segundo projeto de Lei Complementar fruto da Reforma Tributária do Consumo implementada pela EC 132/2023, e visa a instituição do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (CG-IBS), dispõe sobre o processo administrativo tributário relativo ao lançamento de ofício do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e sobre a distribuição do produto da arrecadação do IBS aos entes federativos. Além disso, traz propostas relativas ao Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD).
O Comitê Gestor do IBS representa uma figura sui generis, nova no ordenamento jurídico, que atuará sem vinculação, tutela ou subordinação hierárquica a qualquer órgão da administração pública. De acordo com o PLP, trata-se de uma entidade pública com caráter técnico e operacional sob regime especial, que terá sede e foro no Distrito Federal e será dotado de independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira, com a finalidade de gerir a competência compartilhada para administrar o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
Entre as tarefas desse novo ente, inclui-se a definição das diretrizes para coordenar e atuar, de forma integrada, com as administrações tributárias e das Procuradorias dos Estados, do DF e dos Municípios. Com relação às competências administrativas, tem-se que o CG-IBS deve editar regulamento único e uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do IBS, arrecadar o imposto, efetuar as compensações, realizar as retenções previstas na legislação específica e distribuir o produto da arrecadação aos Estados, ao DF e aos Municípios e, por fim, e no ponto mais preocupante, decidir o contencioso administrativo.
Replicando o art. 156-B, inciso III, da Constituição Federal, incluído pela EC 132/2023, o art. 2º, III, do PLP 108/2024 estabelece que o CG-IBS terá a competência de “decidir o contencioso administrativo”. Por sua vez, os artigos 100 a 103 do PLP 108/2024 tratam de um suposto tribunal administrativo para realizar o julgamento dos processos administrativos fiscais relativos ao IBS e incorrem em flagrante vício de inconstitucionalidade e ilegalidade, pelos seguintes motivos:
- Contencioso representa um conjunto de normas, assim, quando a Constituição Federal diz que o Comitê Gestor irá decidir o contencioso, está dizendo que há competência para tratar das normas de julgamento, mas, em momento algum, diz que o Comitê Gestor terá qualquer competência julgadora.
- O art. 7º do PLP 108/24 menciona quais são os órgãos que compõem a estrutura do Comitê Gestor, e nesta relação não há qualquer órgão julgador ou com competência para julgar processo administrativo fiscal ou que possa ter estrutura de tribunal administrativo.
Apesar do CG-IBS ser uma figura nova, é possível constatar que foi inspirado em um primo já existente, o Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN), instituído pela Lei Complementar nº 123/2006, o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. O CGSN apresenta várias características semelhantes ao CG-IBS, tais como, fazer o gerenciamento dos aspectos tributários, procedendo com a regulamentação da adesão, da exclusão, da tributação, da fiscalização, da arrecadação, da cobrança, da dívida ativa, do recolhimento e dos demais pontos voltados ao regime especial de tributação instituído pelo Simples Nacional; conciliar os diferentes interesses dos diversos entes federados do país, atuando também como um mediador. Todavia, não tem qualquer função de decidir o contencioso, ou algo próximo a disso.
A razão de ser dos dois Comitês é lógica. Tanto o IBS, quanto o Simples Nacional, agregam competências tributárias de mais de um ente federal, requerendo um modelo de centralização administrativa para que possam gerir tais competências.
Apesar do Simples Nacional agregar competência de diversos entes, o julgamento dos processos do SIMPLES é realizado pelo CARF e não afeta, em nada, a distribuição das receitas derivadas do recolhimento do SIMPLES. Fugindo da lógica e coerente regra aplicada para julgamento de processos tributários do SIMPLES, o PLP n. 108/2024 decidiu por caminho tortuoso e de difícil explicação republicana.
Assim, o caminho que aponta, efetivamente, para garantia da simplicidade e da segurança jurídica, é que o julgamento do IBS seja realizado no âmbito da 4ª seção do CARF, o que encontra amparo no art. 327 da Lei Complementar nº 214, de 2025, segundo o qual, o Ministério da Fazenda e o Comitê Gestor do IBS poderão celebrar convênio para delegação recíproca do julgamento do contencioso administrativo relativo ao lançamento de ofício do IBS e da CBS efetuado nos termos do art. 326, de modo a permitir que o julgamento, tanto do IBS, quanto da CBS, sejam realizados no âmbito do CARF.
O julgamento na 4ª seção do CARF deve ser realizado em conformidade com os preceitos já estabelecidos no Decreto nº 70.235, no Regimento Interno do CARF e Projeto de Lei Complementar nº 124/2022. Para tanto, deve ser assegurado, em simetria com o disposto no § 3º do art. 101 do PLP 108/2024, que a 4ª Seção de Julgamentos do CARF observará a paridade de representação entre o conjunto dos Estados e do Distrito Federal e o conjunto dos Municípios e do Distrito Federal, nos termos do regulamento a ser editado pelo Comitê Gestor.
O CARF, com a estrutura e o nome hoje conhecidos, é fruto da Medida Provisória nº 449, de 3 de dezembro de 2008, convertida na Lei nº 11.941, de 27 de maio de 2009, que alterou o art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, que rege o processo administrativo fiscal federal, determinando que compete ao CARF o julgamento, em segunda instância, do processo de exigência de tributos ou contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), vale dizer, os tributos de competência da União. Assim, os tributos federais passaram a ser julgados no âmbito do CARF. Não obstante, observa-se que não existe qualquer norma constitucional ou legal que impossibilite que uma lei traga a previsão de julgamento do IBS (bem como qualquer outro tributo estadual ou municipal) no âmbito do CARF. De tal modo, pensando na eficiência do sistema como um todo, sustentamos a ideia de que o CARF deve ser o órgão competente para julgar tanto a CBS, quanto o IBS.
Se a estrutura do CARF já existe, não há razão para gastar mais verbas do orçamento público para a construção e manutenção de uma nova estrutura para julgamento do IBS, o que vai contra as determinações constitucionais, mormente o art. 37 da Constituição Federal.
A reforma tributária, que trata sobretudo de um dos principais geradores dos litígios em trâmite, qual seja da não cumulatividade, tem a oportunidade de construir estrutura decisional que faça prevalecer a segurança jurídica, a estabilização das relações entre Fisco e contribuinte e a simplicidade, por meio de um contencioso célere e eficiente, cooperando para criação de adequado regime jurídico para melhor integração do contencioso administrativo com o contencioso judicial, portanto, evitaria desgastes ao aparelho estatal com custos e desperdício de tempo.
No quadro jurídico atual, tal como posto, o PLP n. 108/2024 instaura dois procedimentos para tratar de temas idênticos, em dois tribunais distintos, e com a promessa, clara, de que estamos dando dois passos atrás, ou seja, na contramão dos anseios da sociedade brasileira. Além disso, a centralização decisional em órgão não paritário – Comitê de Harmonização – vinculante aos demais órgãos de julgamento não só sai na contramão dos anseios, como também coloca em xeque a estabilidade do Estado Democrático de Direito, construído a duras penas nas últimas décadas.
Pensando nos desdobramentos da Reforma Tributária sobre os diversos setores da economia, será realizado, nos dias 2 e 3 de outubro, o Congresso Empresarial, Tributário e Contábil da Paraíba (CETC-PB) em conjunto com o Aconcarf Itinerante. O evento tem como objetivo discutir os impactos da Reforma, esclarecer dúvidas e apresentar soluções práticas para empresas e profissionais. Entre os temas centrais, estará o futuro do Simples Nacional diante da nova sistemática tributária.
A programação reunirá conselheiros do CARF, auditores da Receita Federal, advogados, contadores, empresários e especialistas, promovendo um espaço de debate qualificado sobre os caminhos possíveis para enfrentar as mudanças.
As inscrições podem ser realizadas pelo site: www.aconcarfparaiba.com.br
Ana Claudia Borges de Oliveira é Conselheira do CARF, condecorada com a Medalha do Mérito Funcional Ministro Leopoldo de Bulhões e presidente da ACONCARF.
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