
Dentre os tratamentos específicos trazidos pela reforma tributária do consumo no Brasil, o art. 138 da Lei Complementar nº 214/25 (LC 214) versa sobre a redução em 60% das alíquotas do IBS e da CBS nas operações com insumos agropecuários e aquícolas, além de estabelecer hipóteses em que os novos tributos serão diferidos.
A redução das alíquotas em 60% acontecerá, lato sensu, nas operações realizadas com os referidos produtos (elencados no Anexo IX da LC 214), enquanto a aplicação do diferimento se dá nas seguintes situações: (i) fornecimento realizado por contribuinte sujeito ao regime regular do IBS e da CBS para contribuinte sujeito ao regime regular do IBS e da CBS ou para produtor rural não contribuinte do IBS e da CBS que utilize os insumos na produção de bem vendido para adquirentes que têm direito à apropriação dos créditos presumidos estabelecidos pelo art. 168 da LC 214 (ou seja, fornecimento para adquirente sujeito ao regime regular), e (ii) importação realizada por contribuinte sujeito ao regime regular do IBS e da CBS e por produtor rural não contribuinte do IBS e da CBS que utilize os insumos na produção de bem vendido para adquirentes que têm direito à apropriação dos créditos presumidos estabelecidos pelo art. 168 da LC 214.
Contudo, considerando as práticas de mercado e o modelo de negócio adotado pelos seus participantes, em verdade, nos parece que a regra geral ou a grande maioria das operações com esses produtos estará abarcada pelo diferimento.
Além disso, a despeito das previsões de encerramento do diferimento constantes no par. 5º e seguintes do art. 138 da LC 214, para uma parcela significativa dos contribuintes sujeitos ao regime regular do IBS e da CBS não haverá, em suas operações de saída, destaque/cobrança de tributo (não se estaria diante de uma verdadeira hipótese de isenção?), bem como, será possível seguir
com a manutenção dos créditos oriundos das operações de aquisição (não identificamos hipótese de estorno de crédito).
Nesse contexto, o presente artigo pretende fazer um cotejo do tratamento conferido aos insumos agropecuários e aquícolas pela LC 214 com o conteúdo do inc. I e II do par. 7º do art. 156-A da Constituição Federal de 1988 (CF 88), incluído pela Emenda Constitucional nº 132/23 (EC 132), que ao tratarem sobre a isenção e imunidade, preveem que não implicarão crédito para compensação com o montante devido nas operações seguintes, além de acarretar a anulação do crédito relativo às operações anteriores.
A isenção advém de normas infraconstitucionais e no campo tributário está intimamente ligada ao próprio exercício da competência do ente tributante, regendo-se sua interpretação de maneira literal, consoante dispõe o inc. II do art. 111 do Código Tributário Nacional (CTN). Nesse sentido, são as lições do Professor Paulo de Barros Carvalho1, ao dispor que a isenção:
(…) se dá no plano da legislação ordinária. Sua dinâmica pressupõe um encontro normativo, em que ela, regra de isenção, opera como expediente redutor do campo de abrangência dos critérios da hipótese ou da consequência da regra-matriz do tributo.
Não obstante o exposto, cabe destacar a ressalva feita pela Professora Regina Helena Costa2, ao lembrar que a isenção “também é tema constitucional, uma vez constituindo a competência para isentar o reverso da competência tributária, que está disciplinada na Constituição da República.”
Superando a doutrina tradicional que entende a isenção como uma dispensa do pagamento do tributo devido, o jurista Alfredo Augusto Becker3 estabelece que:
Na verdade, não existe aquela anterior relação jurídica e respectiva obrigação tributária que seria desfeita pela incidência da regra jurídica de isenção. Para que pudesse existir aquela anterior relação jurídico-tributária, seria indispensável que, antes da incidência da regra jurídica de isenção, houvesse ocorrido a incidência da regra jurídica de tributação. (…). A regra jurídica que prescreve a isenção, em última análise, consiste na formulação negativa da regra jurídica que estabelece a tributação.
Desenvolvendo o entendimento supracitado, é a doutrina do Professor Paulo de Barros Carvalho4, ao apontar que somente é possível cogitar a incidência tributária depois que se considerar todos os suportes físicos, inclusive os de isenção. Sendo assim, temos que a norma de isenção atua no próprio campo normativo, mutilando a incidência5. Vejamos:
As normas de isenção pertencem à classe das regras de estrutura, que intrometem modificações no âmbito da regra-matriz de incidência tributária. Guardando sua autonomia normativa, a norma de isenção atua sobre a regra-matriz de incidência tributária, investindo contra um ou mais critérios de sua estrutura, mutilando-os, parcialmente. Com efeito, trata-se de encontro de duas normas jurídicas que tem por resultado a inibição da incidência da hipótese tributária sobre os eventos abstratamente qualificados pele preceito isentivo, ou que tolhe sua consequência, comprometendo-lhe os efeitos prescritivos da conduta.
Diante disso, entendemos a isenção como uma norma infraconstitucional que suprime, subtrai uma parcela do espaço de alcance dos critérios da regra- matriz de incidência tributária, interrompendo seus efeitos em determinadas situações.
Ou seja, a norma de isenção atua no próprio campo normativo, mutilando a incidência. Quer dizer, ela não atua em momento posterior ao surgimento da obrigação, mas limita o próprio alcance da incidência, enquanto outros métodos reduzem parte do critério quantitativo do consequente da regra matriz de incidência tributária. Nesse sentido, cabe destacar mais uma vez as lições do Paulo de Barros Carvalho6:
Não se deve confundir a subtração do campo de abrangência do critério da hipótese ou da consequência com a mera redução da base de cálculo ou da alíquota que não as anule. A diminuição que se venha processar no critério quantitativo sem, com isso, fazer desaparecer completamente o objeto da obrigação tributária, não é isenção. Isso porque, de acordo com a fenomenologia da isenção, a situação prescrita pelo direito como isenta não está sujeita à incidência tributária, o que não ocorre com aquela outra, cuja base de cálculo ou alíquota foram apenas reduzidas (…), ainda que o valor pareça menor que aquele diacronicamente percebido há ali incidência tributária e, portanto, não há isenção.
Ocorre que a diferença entre os institutos apontada acima se dá quando estamos diante de uma situação que não suprima completamente o objeto da obrigação tributária. No caso do diferimento, é justamente isso que ocorre, pois ainda que sobrevenha a subsunção do fato à regra tributária, o diferimento nas operações faz com que seus efeitos jurídicos não sejam manifestados, exatamente porque neste caso se constata a supressão integral do objeto da obrigação. Neste ponto, destacamos7:
Como já dissemos, é uma fórmula inibitória da operatividade funcional da regra-matriz, de tal forma que, mesmo acontecendo o evento tributário, no nível da concretude real, não pode o fato ser constituído e seus peculiares efeitos não se irradiam, justamente porque a relação obrigacional não se poderá instalar à míngua de objeto. Segundo pensamos, é um caso típico de isenção: guarda- lhe a natureza e mantém-lhe as aparências.
Assim, seria possível concluir que no caso do diferimento (na presente análise, correspondente a integralidade das operações de muitos contribuintes sujeitos ao regime regular do IBS e da CSB) não haveria distinção em relação a isenção, dado o completo perecimento do objeto da obrigação tributária. Por consequência, dado as vedações constitucionais anteriormente elencadas, a manutenção do crédito poderá ser, ao menos, questionável.
1 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 319 Edição revista atualizada. São Paulo: Noeses, 2021. Pag. 206. E-book.
2 COSTA, Regina Helena. Imunidades tributárias: Teoria e análise da jurisprudência do STF. 39 Edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2015. Pag. 117.
3 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 49 Edição. São Paulo: Noeses, 2007. Pag. 234 e 235.
4 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 79 Edição revista. São Paulo: Noeses, 2018. Pag. 616
5 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 59 Edição. São Paulo: Saraiva, 2015. Pag. 692.
6 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. Op. Cit.. Pag. 531. E-book.
7 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. Op. Cit.. Pag. 530. E-book.
Daniel Piga Vagetti é Mestre em Direito Tributário pela FGV-SP. é Coordenador Tributário na Ourofino Saúde Animal.
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