
O inc. I do par. 1º do art. 156-A da Constituição Federal de 1988 (CF88), combinado com o par. 16º do art. 195 da CF88, incluídos pela Emenda Constitucional nº 132/23 e recentemente regulamentados pela Lei Complementar nº 214/25, estabelecem que o IBS e a CBS serão não cumulativos, compensando-se o tributo devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas na Constituição.
Esse movimento que privilegia uma “não cumulatividade ampla”, um dos grandes motes da Reforma Tributária do Consumo no Brasil (RT), ocorre porque, no atual sistema tributário, existem uma série de situações e entraves legislativos que impedem o afastamento do resíduo tributário na tributação sobre o consumo, como por exemplo o acúmulo de saldos credores e a restrição ao aproveitamento de créditos.
Nesse contexto, a partir de uma visão pragmática, o presente artigo pretende explorar, brevemente, o conceito de resíduo tributário ou hidden tax, e conjecturar sobre o potencial impacto que a RT terá sobre essa frente.
O termo resíduo tributário ou hidden tax surge a partir de uma análise econômica do direito tributário, especialmente em um contexto de tributos sobre o consumo calculados por dentro, em que o seu valor é embutido no preço de bens e serviços, não aparecendo de forma explícita no momento da compra.
Em sua obra “Princípios de Economia Política e Tributação”, David Ricardo, economista e político britânico contemporâneo de James Mill (pai de John Stuart Mill), já mencionava a forma como os tributos indiretos se espalham na economia e são repassados ao consumidor. Na doutrina nacional, autores como Aliomar Baleeiro e Ricardo Lobo Torres discutem o fenômeno do repercutibilidade tributária ou do repasse do ônus econômico ao consumidor final.
Em linhas gerais, o resíduo tributário decorre da incidência de tributos sobre aquisições de produtos e serviços que devido à cumulatividade acabam aumentando o custo final, e, por consequência, impactando a carga tributária real ou efetiva.
Feita essa breve digressão, é oportuno mencionar que diversas matérias estão sendo publicadas no sentido de que, no contexto da RT, as empresas deverão levar em conta não apenas os tributos incidentes em suas operações próprias (resíduos de primeira ordem), mas também os resíduos de seus fornecedores, mesmo que não visíveis à primeira vista (chamados de resíduos de segunda ordem).
A recomendação atual de especialistas é de que as cláusulas contratuais passem a prever qual é o preço trabalhado nas operações ou negociações: preço bruto ou preço líquido – dada a sistemática do novo modelo, nos parece fazer sentido a adoção do preço líquido.
Contudo, a formação desse “preço líquido” carrega um elevado grau de subjetividade. Evidentemente, é sabido que os tributos atuais sobre o consumo, notadamente o ICMS, PIS, Cofins, ISS e IPI são calculados por dentro, o que permite realizar previamente um cálculo inverso (ou “desgross up”) para obtenção de uma primeira base de cálculo líquida para aplicação do IVA dual (impacto dos resíduos de primeira ordem), ou, minimamente, para discussão pelos times de suprimentos.
Em relação aos resíduos de segunda ordem, correspondentes as aquisições realizadas pelos fornecedores e prestadores que não possibilitam a tomada de créditos pelos mesmos (custo potencialmente repassado nos preços), a partir de pesquisas e levantamentos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), combinados com uma complexa análise econômica, seria possível estimar quais seriam os seus resíduos tributários e, por efeito, o resíduo tributário de segunda ordem do adquirente.
Em tese, essa seria a melhor estimativa para apuração de uma base de cálculo ou “preço líquido” adequado para aplicação do IVA dual no contexto da RT. De maneira complementar, para aqueles que tiverem interesse sobre o tema, o Professor Eduardo Fleury vem trabalhando nessas questões, de forma a mensurar e evidenciar essa nova base de cálculo ou “preço líquido”.
A despeito das análises técnicas econômicas e do potencial impacto na inflação que a ausência da adoção de uma base de cálculo ou “preço líquido” adequado possam causar, nas lições de Ludwig von Mises: “não há como escapar das inexoráveis leis do mercado”. O mercado tem a capacidade de “tomar decisões” e gerenciar questões externas, sendo, fundamentalmente, um ente autônomo na economia.
Dessa forma, nos parece que mesmo diante da existência de boas práticas para a mensuração de uma adequada base de cálculo ou “preço líquido” para aplicação do IVA dual no contexto da RT, considerando a complexidade envolvida para tanto, especialmente para pequenas e médias empresas, o mercado deverá se regular de forma a manter uma precificação muito próxima do que se tem hoje, e, potencialmente, com um incremento em suas margens, considerando a ausência do repasse dos impactos ocasionados pelas mudanças no ordenamento jurídico tributário nacional.
Sendo assim, necessário que, principalmente, as equipes tributárias, jurídicas e comerciais sigam atentas às práticas de mercado e, dentro dos limites que “este agente autônomo” permite, atuem como mitigadoras de velhas práticas negociais.
Daniel Piga Vagetti é Mestre em Direito Tributário pela FGV-SP. é Coordenador Tributário na Ourofino Saúde Animal.
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