O problema da bitributação e bis in idem na incidência de IBS e CBS sobre a alienação de imóveis

Por Marcelo John Cota 

A reforma tributária representou um momento disruptivo no Sistema Tributário Nacional. Estamos diante de novos princípios, novos parâmetros da sistemática de tributação e, sobretudo, de uma nova lógica aplicável às operações de consumo. Não é exagero dizer que a reforma mudou profundamente o paradigma que vigorava no Brasil há décadas.

Essas novidades, contudo, em que pese nos apresentem um horizonte de novas possibilidades, devem guardar um grau de coesão mínimo com as estruturas do Sistema Tributário Nacional. Isto é, as alterações promovidas pela reforma tributária devem ser avaliadas e interpretadas sob a luz dos conceitos fundamentais desse Sistema.

Com essa provocação inicial, o presente artigo se presta a enfrentar a problemática da incidência do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) nas operações de alienação de bens imóveis.

Considerando a existência do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), estaríamos diante de um possível caso de bitributação e/ou bis in idem nessas situações? É o que será explorado a seguir.

A Competência Tributária na Constituição Federal e suas feições positiva e negativa.

Investigar um possível caso de bitributação ou bis in idem no Sistema Tributário Nacional demanda, inicialmente, a compreensão sobre o conceito de competência tributária, haja vista que é a partir desse instituto que teremos a delimitação das materialidades alcançadas pela tributação.

A competência tributária é norma de estrutura que atribui a cada ente federativo (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) a aptidão para instituir tributos, delimitando as materialidades sobre as quais cada um deles poderá instituir uma exação tributária.

Essa definição apresenta uma feição positiva, correspondente à permissão direta para o ente político tributar determinada manifestação de riqueza prevista no texto constitucional. Por exemplo, a Constituição conferia aos Estados, antes da Reforma, a competência para instituir imposto sobre a “circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação”. Logo, essas atividades estão autorizadas pela Constituição a serem alcançadas pelo poder de tributar dos Estados.

Por outro lado, a competência tributária também possui uma feição negativa, que veda a invasão dessas materialidades por outros entes. Isto é, nenhum outro ente possui autorização para tributar “circulação de mercadorias” ou “prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação”. Seguindo o exemplo dado, mesmo os Municípios, ao serem autorizados a tributar “prestações de serviços” pelo ISS, só podem fazer sobre aqueles serviços que não correspondam aos “serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação”, pois tais atividades específicas já foram alcançadas pela delimitação de competência reservada aos Estados.

Em outras palavras, se a Constituição outorga a um ente competência para tributar certo fato (critério material da hipótese de incidência), outro ente não pode tributar esse mesmo fato, sob pena de violação da repartição de competências.

Essa rígida discriminação das materialidades tributáveis evita dois fenômenos relacionados: a bitributação e o bis in idem. A vedação à bitributação decorre justamente desse desenho estrutural promovido pelo texto constitucional, que acaba por proibir entes distintos de tributarem o mesmo fato gerador. Já a vedação ao bis in idem impede que o mesmo ente tributante exija mais de um tributo sobre idêntica materialidade.

Como ensina a doutrina, bitributação ocorre quando dois entes diferentes cobram tributos sobre o mesmo fato, ao passo que o bis in idem se caracteriza pela dupla cobrança, pelo mesmo ente, sobre um único fato gerador. Ambos os casos são rechaçados pelo ordenamento a partir da noção de delimitação das competências tributárias, seja por ferir o pacto federativo (no caso da bitributação), seja por violar a capacidade contributiva e a razoabilidade da tributação (no caso do bis in idem). Assim, os limites positivo e negativo da competência tributária funcionam como garantias constitucionais para evitar sobreposições indevidas de tributos sobre a mesma riqueza.

Ou seja, uma vez que a Constituição Federal atribua a um ente político uma competência para tributar determinada materialidade (feição positiva da competência), as demais materialidades eleitas pelo texto constitucional autorizam a instituição de tributos de forma a não invadir a competência já delegada a outros entes (feição negativa da competência).

É partindo dessa premissa que chegaremos ao problema da tributação das alienações de bens imóveis pelo IBS e CBS.

Competência Municipal do ITBI e a Introdução do IBS e CBS no ordenamento jurídico

Entre as competências tributárias delineadas na Constituição Federal está a dos Municípios para instituir o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis “inter vivos” (ITBI). Nos termos do art. 156, II, da CF/88, compete exclusivamente aos Municípios tributar a transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição.

Trata-se de uma materialidade claramente definida: o fato gerador do ITBI é a transmissão onerosa de propriedade imobiliária ou de direitos reais sobre imóvel, realizada entre pessoas vivas. Evidentemente, essa materialidade engloba a operação de alienação de bens imóveis, por se tratar de operação que promove a transmissão onerosa “inter vivos” desses bens.

E, na linha do que foi tratado no tópico anterior, essa competência municipal apresenta caráter exclusivo e excludente: somente os Municípios podem instituir imposto sobre esse tipo de transmissão imobiliária, e nenhum outro ente federado pode invadir essa materialidade, em atenção à repartição de competências promovida pelo texto constitucional.

Isto é, o ITBI configura um imposto reservado aos Municípios e sua materialidade – a transmissão onerosa de imóveis – encontra-se protegida pela feição negativa da competência tributária, impedindo sobreposição por tributos de outros entes, ou mesmo que os próprios Municípios exijam tributo em duplicidade sobre essas operações.

Ocorre que, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023, o Sistema Tributário Nacional sofreu uma reforma estrutural que introduziu os novos tributos da Reforma Tributária. Essa emenda criou a figura do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios, e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência da União, unificando e substituindo tributos como o ICMS, ISS, PIS e COFINS.

No bojo dessa reforma, o texto constitucional autorizou que lei complementar estabeleça regimes específicos de tributação para operações com bens imóveis (entre outras) no âmbito dos novos tributos. Em síntese, a EC 132/2023 facultou que o legislador complementar defina como o IBS e a CBS incidirão sobre determinadas operações imobiliárias, promovendo a tributação sobre essas operações.

Atendendo a essa previsão, a Lei Complementar (LC) 214/2025 – responsável por instituir e regulamentar o IBS/CBS – dispôs expressamente que o IBS e a CBS incidem sobre operações com bens imóveis. Contudo, ao elencar as operações que provocam a incidência tributária, a lei aduz expressamente que IBS e CBS incidem sobre operações de alienação de bens imóveis. Ou seja, a operação de venda de um imóvel passou a ser fato gerador tanto do IBS dos entes subnacionais quanto da CBS da União.

A LC 214/2025 detalha a mecânica dessa tributação imobiliária no contexto do IVA: base de cálculo, sujeitos, alíquotas reduzidas e créditos presumidos para mitigar impactos. Contudo, o cerne da inovação é claro: transações de compra e venda de imóveis, antes tributadas apenas pelo ITBI municipal, passam a atrair também a incidência do IVA (IBS/CBS).

Tal circunstância, contudo, se encontra em total oposição à noção de repartição de competências promovida pelo texto constitucional.

Conflito de Competências: Incidência de IBS e CBS sobre alienação de bens imóveis

A reforma promove a tributação das operações imobiliárias sob a lógica de novos tributos de base ampla, alinhada à prática internacional de tributar o consumo de bens (inclusive imóveis) de forma unificada.

Em outros países que adotam a sistemática de Imposto sobre Valor Agregado (IVA), normalmente inexiste um tributo análogo ao ITBI isolado – a venda de imóveis é tributada pelo próprio IVA geral, sem cobrança adicional de imposto de transmissão. O Brasil, porém, com a manutenção do ITBI paralelo ao novo IVA dual, caminha para uma coexistência atípica de dois tributos (ITBI + IBS e CBS, admitindo-se esses últimos como um único tributo) incidindo sobre a mesma operação imobiliária, o que desencadeia o debate sobre bitributação e bis in idem.

É dizer que a extensão da incidência do IBS e CBS às alienações imobiliárias levanta de imediato a suspeita de conflito de competências tributárias, com ocorrência de dupla tributação sobre o mesmo fato.

Sob o ângulo da repartição de competências, a situação enseja bitributação, já que um ente federado diverso (o Estado, via IBS, e a União, via CBS) estaria ingressando em materialidade tributável reservada aos Municípios através do ITBI (transmissão onerosa “inter vivos” de imóveis). Note-se que a competência para tributar transmissões imobiliárias era exclusiva municipal e, ao se permitir a incidência do IBS pelos Estados e DF e da CBS pela União nessas operações, tem-se uma possível usurpação da competência municipal e violação ao princípio do pacto federativo.

Por outro lado, examinando a questão do ponto de vista da soma de exações (ITBI + IBS e CBS), há ocorrência de bis in idem tributário, uma vez que o mesmo Município que já tributa a operação de alienação de imóveis via ITBI, passará também a obter receita via IBS sobre o mesmo fato (ainda que o IBS seja um tributo compartilhado).

Na situação em exame, portanto, a conjunção da manutenção do ITBI com a introdução do IBS e CBS sobre a mesma operação de venda de imóvel implicaria dupla incidência, violando o desenho constitucional de repartição de competências.

Isso porque, considerando que o texto constitucional já confere aos Municípios a competência para tributar a “transmissão ‘inter vivos’, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis”, as demais competências prescritas na Constituição Federal não podem eleger a mesma materialidade para fins de incidência tributária.

No caso do IBS e CBS, portanto, quando o texto constitucional prescreve que esses tributos irão incidir sobre bens e serviços e destaca que lei complementar disporá sobre regimes específicos de tributação para “operações com bens imóveis”, a interpretação mais adequada da competência compartilhada atribuída aos Municípios e Estados é a de que esses tributos incidem em todas as operações envolvendo bens imóveis, exceto aquelas decorrentes de “transmissão ‘inter vivos’, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis”, visto que essa materialidade já é alcançada pela figura do ITBI.

Por consequência, a LC 214/2025, ao dispor, em seu art. 252, inciso I, que o IBS e CBS incidem sobre as operações de alienação de bens imóveis, incorre em inconstitucionalidade, por desrespeito à repartição de competências tributárias.

Considerações Finais

A problemática posta permite antecipar que a convivência entre ITBI e IBS/CBS na tributação das alienações de imóveis ensejará controvérsia e intensa litigiosidade, em contrariedade às ideias que fundamentaram a própria realização da Reforma Tributária.

A exigência de IBS e CBS sobre essas operações é um problema posto pela legislação complementar que institui os tributos, já que o texto constitucional não especificou sobre quais operações com bens imóveis haveria a incidência e, desse modo, não promoveu qualquer tipo de invasão de competências. A inconstitucionalidade nasce, portanto, a nível infraconstitucional, quando a lei complementar institui a incidência dos tributos sobre a alienação de imóveis.

Essa inconstitucionalidade até poderia ser usurpada pelo Legislativo antes que a litigiosidade alcançasse o tema. Mas, nos tempos atuais, a insegurança jurídica e incerteza quanto à forma com que as temáticas tributárias vêm se desenrolando no âmbito do Poder Judiciário faz com que o Poder Público seja estimulado a litigar, mesmo em situações de evidente inconstitucionalidade.

Diante desse cenário de insegurança jurídica, um dos principais receios sobre a situação é que, considerando posicionamentos recentes dos tribunais superiores que, muitas vezes, justificam a manutenção de ilegalidades e inconstitucionalidades sob argumento de se proteger o orçamento público, possamos estar diante de um mero equívoco que pode culminar na modificação dos conceitos de competência tributária e de repartição de competências. Seria a relativização de conceitos fundamentais sobre os quais foram construídos o Sistema Tributário Nacional, tudo para justificar a exigência de uma bitributação e bis in idem.

De maneira controversa, portanto, cabe aos contribuintes o litígio como mecanismo de defesa das garantias constitucionais sobre as quais o nosso Sistema Tributário foi erigido.


Marcelo John Cota de A. Filho. Advogado tributarista no escritório Schiefler Advocacia. Especialista em Direito Tributário pelo IBET e em Gestão Tributária pela FIPECAFI. Participou da revisão do texto da Reforma Tributária no Senado Federal.


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