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O processo legislativo constitucional e a reforma tributária

Reprodução: Freepik.

Por  Bruno Bubani e Roberta Santini

A Reforma Tributária sobre o Consumo foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro através da Proposta de Emenda Constitucional – PEC 45/2019, transformada na Emenda Constitucional 132/2023 e promulgada pelo Congresso Nacional em 20/12/2023. 

Durante o trâmite legislativo da PEC 45/2019, algo minimamente curioso aconteceu na redação dos textos aprovados na Câmara e no Senado, e daquele posteriormente encaminhado pela Câmara para sanção presidencial, quanto aos artigos 156-A, inciso IX e 195, §16/17, no que tange à expressa exclusão do IBS e da CBS da base de cálculo do ICMS e do ISS.

O texto aprovado pela Câmara e encaminhado ao Senado em 03/08/2023, constava que o IBS (156-A) e a CBS (195, V) não comporiam suas próprias bases de cálculo, nem um a base do outro, nem as bases do Imposto Seletivo (153, VIII), do ICMS (155,II) e do ISS (156, III).

Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (…) IX – não integrará sua própria base de cálculo nem a dos tributos previstos nos arts. 153, VIII, 155, II, 156, III, e 195, V;

(…)

Art. 195……………………………………………………………………………….. V – sobre bens e serviços, nos termos de lei complementar. ……………………………………………………………………………………. § 16. A contribuição prevista no inciso V não integrará sua própria base de cálculo nem a dos impostos previstos nos arts. 153, VIII, 155, II, 156, III, e 156-A.

O Senado, por sua vez, ao revisar a proposta, acolheu o texto da Câmara e promoveu apenas alguns acréscimos pontuais, como as exclusões do IBS da base de cálculo do IPI (153, IV), e do IBS e da CBS da base de cálculo das contribuições sociais dos incisos I, b e IV do art. 195 e do art. 239, destacadas abaixo, e encaminhou o seguinte texto de volta à Câmara em 14/11/2023: 

Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (…) IX – não integrará sua própria base de cálculo nem a dos tributos previstos nos arts. 153, IV e VIII, 155, II, 156, III, e 195, I, “b”, IV e V, e da contribuição para o Programa de Integração Social de que trata o art. 239;

Art. 195……………………………………………………………………………….. V – sobre bens e serviços, nos termos de lei complementar. ……………………………………………………………………………………. 17(Senado). A contribuição prevista no inciso V do caput não integrará sua própria base de cálculo nem a dos tributos previstos nos arts. 153, VIII, 155, II, 156, III, 156-A e 195, I, “b”, e IV, e da contribuição para o Programa de Integração Social de que trata o art. 239.

Apesar da Câmara e Senado terem votado e aprovado a expressa exclusão do IBS e da CBS da base de cálculo do ICMS e do ISS, essa previsão foi suprimida na versão final da PEC encaminhada pela Câmara para sanção presidencial, e que hoje consta na Constituição Federal. 

Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios. (…) IX – não integrará sua própria base de cálculo nem a dos tributos previstos nos arts. 153, VIII, e 195, I, “b”, IV e V, e da contribuição para o Programa de Integração Social de que trata o art. 239;

(…)

Art. 195. ……………………………………………………………………….. V – sobre bens e serviços, nos termos de lei complementar. ……………………………………………………………………………………. § 17. A contribuição prevista no inciso V do caput não integrará sua própria base de cálculo nem a dos tributos previstos nos arts. 153, VIII, 156-A e 195, I, “b”, e IV, e da contribuição para o Programa de Integração Social de que trata o art. 239.

O texto encaminhado pela Câmara à sanção presidencial, portanto, foi uma versão diferente do texto previamente aprovado e encaminhado ao Senado, e também do texto que retornou da Casa Revisora, com supressões relevantes à compreensão semântica da norma.

Isto porque, sem a expressa previsão de que o IBS e a CBS não compõe a base de cálculo do ICMS e do ISS,  muitos Entes Federados têm defendido que haveria inclusão tácita — em evidente tentativa de majorar a base de cálculo dos seus tributos (e consequentemente a arrecadação).

Todavia, no nosso entendimento, a pretensa inclusão destes novos tributos na base de cálculo do ICMS e do ISS, entre 2027 e 2032, seria inconstitucional por violação à bicameralidade congressual que rege o processo legislativo brasileiro, expressamente prevista no art. 60, §2º da Constituição Federal, e notadamente discutido nas ADIs 3.367, 2.238 e 2.182.

O devido processo legislativo para a aprovação de emendas constitucionais exige que o texto seja aprovado em ambas as Casas do Congresso Nacional, em dois turnos, com quórum qualificado, sendo vedadas alterações substanciais sem nova deliberação pela casa revisora.

O bicameralismo é o nome do sistema que se dá à organização institucional em duas Casas do Parlamento, representativo do Poder Legislativo no sistema republicano brasileiro, a Câmara e o Senado, que são responsáveis por revisar os processos legislativos iniciados uma pela outra. 

Esse sistema tem como objetivo fazer com que os processos legislativos (Leis Federais e Emenda Constitucionais) sejam melhor debatidos e ponderados, na busca por uma maior segurança legislativa. Nas palavras do Ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, quando do julgamento da ADI 2.182, “Em síntese, o preceito constitucional estabelece o duplo crivo. Com ele conflita, portanto, qualquer procedimento que implique a voz única de uma das Casas do Legislativo”.

A Câmara introduziu uma nova redação com impactos hermenêuticos importantes no cenário legislativo/jurídico ao retirar a expressa previsão de exclusão do IBS e da CBS da base de cálculo do ICMS e do ISS, e desprezou o sistema bicameral ao enviá-lo para sanção presidencial sem a possibilidade de revisão pelo Senado. 

A única hipótese de acolhimento constitucional sobre o ocorrido parte da compreensão de que a supressão do texto promovida pela Câmara não resultou em alteração de sentido significativa da norma, de modo que a despeito da supressão o IBS e a CBS não comporão as bases de cálculo do ICMS e do ISS.

Neste sentido, já decidiu o STF quando do julgamento da ADI 3.367, sob relatoria do então Ministro Cezar Peluso:

“5. (…) Previsão em texto aprovado pela Câmara dos Deputados e constante do Projeto que resultou na Emenda Constitucional nº 45/2004. Supressão pelo Senado Federal. Reapreciação pela Câmara. Desnecessidade. Subsistência do sentido normativo do texto residual aprovado e promulgado (art. 103-B, §4º, III). (…) Ofensa ao art. 60, §2º, da CF. Não ocorrência. Argüição repelida. Precedentes. Não precisa ser reapreciada pela Câmara dos Deputados expressão suprimida pelo Senado Federal em texto de projeto que, na redação remanescente, aprovada de ambas as Casas do Congresso, não perdeu sentido normativo.

Dito isso, ao nosso ver, a tentativa dos Estados e Municípios de considerar o IBS e a CBS nas bases de cálculo do ICMS e do ISS deve ser tida como manifestamente inconstitucional. Essa interpretação, além de desrespeitar a sistemática do bicameralismo e o processo legislativo constitucional, afronta também os princípios constitucionais tributários da simplicidade e transparência.

Além disso, a omissão final não representa e nem pode representar uma autorização tácita para a inclusão dos novos tributos nas bases de cálculo do ICMS e do ISS. Pelo contrário, a análise do processo legislativo evidencia a intenção do legislador de excluir tais valores, e a sua supressão só se constitui legítima quando não houver interferência no sentido normativo emanado.

A eventual inclusão, sem respaldo em nova Emenda Constitucional regularmente processada, não deve resistir ao controle de constitucionalidade, abrindo espaço para intensas discussões judiciais que, infelizmente, só pioram o cenário jurídico e trazem ainda mais insegurança aos contribuintes.


Bruno Bubani é Advogado, Especialista em Direito Tributário pelo IBET e Contabilidade Tributária pela PUC, Líder de Comitê da Reforma Tributária do Tax is Cool e Supervisor Jurídico e Tributário da Hidrolight.

Roberta Santini é Advogada, Especialista em Direito Tributário pelo INSPER, com mais de 15 anos de experiência nas áreas jurídica e tributária. Tax Reform Manager na Bravo Corp.


Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.

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