O Super Comitê Gestor; PLP 108/2024 traz armadilhas para as empresas

Fachada do Congresso Nacional
Fachada do Congresso Nacional, a sede das duas Casas do Poder Legislativo brasileiro – Jefferson Rudy via Agência Senado

Por Regina Krauss

Uma entidade única e absolutamente nova no Brasil será responsável pela administração do IBS, parte fundamental da reforma que estabeleceu como base do modelo brasileiro de tributação o IVA dual. Sem subordinação a qualquer outro órgão da Administração Pública, o Comitê Gestor será composto por representantes dos estados, Distrito Federal e municípios e vai administrar cerca de 20% do PIB.

Toda a regulamentação do Comitê está prevista no PLP 108/2024, que após ser aprovado pela Câmara dos Deputados. A expectativa é de que os senadores aprovem ainda no primeiro semestre de 2025 o projeto, já que o período-teste de cobrança dos novos impostos começa em 2026. (até o fechamento desta edição, o texto estava em discussão no Senado)

O projeto, que possui 124 páginas, também prevê como será o processo administrativo para resolver disputas relativas ao IBS, como o dinheiro arrecadado será distribuído entre os Estados e Municípios, e como serão tratados os saldos de créditos do ICMS durante a transição para o novo imposto. Além disso, estabelece novas regras para o Imposto sobre Transmissão ‘Causa Mortis’ e Doação de Bens e Direitos (ITCMD).

Para o advogado tributarista Luiz Renato Hauly, a criação do Comitê Gestor do IBS garante uma governança equilibrada, com participação paritária entre Estados e Municípios, assegurando uniformidade na arrecadação e fiscalização, além de uma gestão mais eficiente dos recursos. “Para o setor privado, a centralização dos procedimentos reduz a complexidade tributária, enquanto o novo processo administrativo tributário, baseado em princípios como simplicidade, publicidade e duração razoável, proporciona mais previsibilidade e agilidade na resolução de litígios”, acrescenta.

Composição do Comitê Gestor

A estrutura organizacional básica do comitê será formada por: 

  • Conselho Superior, instância máxima de deliberação, formado por 27 membros que representarão os estados e o DF e mais 27 membros que representam os municípios e o DF.
  • Diretoria-Executiva e Diretorias de Fiscalização, Arrecadação e Cobrança, Tributação, Informações Econômico-Fiscais, Tecnologia da Informação e Comunicação, Revisão do Crédito Tributário, Administrativa, Procuradorias e Tesouraria.
  • Secretaria-Geral
  • Assessoria de Relações Institucionais e Interfederativas
  • Corregedoria
  • Auditoria Interna

Regras

Pelo projeto aprovado na Câmara, o Comitê Gestor do IBS reunirá representantes de todos os entes federados para coordenar a arrecadação, a fiscalização, a cobrança e a distribuição desse imposto. 

Embora a coordenação fique a cargo do comitê gestor, as atividades efetivas de fiscalização, lançamento, cobrança e inscrição em dívida ativa do IBS continuarão a ser feitas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios. O comitê também será responsável por elaborar a metodologia e o cálculo da alíquota, entre outras atribuições.

Com sede em Brasília, o Conselho Superior tomará decisões por maioria absoluta dos representantes dos entes. No caso dos estados e do DF, além da maioria absoluta será necessário o voto de conselheiros que, somados, representem mais de 50% da população do país, regra incluída durante a tramitação na Câmara.

Eleição dos representantes

A composição das 27 vagas para municípios no comitê gestor será definida em uma eleição, com a participação de cada um dos prefeitos das 5.570 cidades do Brasil. Cada prefeito vota duas vezes: da primeira vez cada município conta um voto na eleição da chapa que ocupará 14 cadeiras do comitê. Na segunda, serão escolhidos os ocupantes das 13 cadeiras restantes no colegiado. Aqui, o voto é proporcional à população. Cidades com mais habitantes têm um peso maior na votação.

A FNP (Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos) e a CNM (Confederação Nacional de Municípios) são as associações habilitadas para representar os municípios legalmente nesta eleição.

Critérios

O titular do conselho indicado pelos estados e DF deverá ser ocupante do cargo de secretário de Fazenda ou cargo similar. Em relação aos municípios, o representante poderá atender a um dos seguintes critérios: ocupar o cargo de secretário municipal de Fazenda ou similar; ter experiência mínima de dez anos na administração tributária ou ter experiência de quatro anos ocupando cargos de direção superior na administração tributária dos municípios.

O texto veda a reeleição para presidente e vice-presidentes do Conselho Superior e prevê a alternância nos mandatos de 2 anos entre o grupo de representantes dos estados e o grupo de representantes dos municípios, tanto no Conselho quanto nas diretorias. A alternância deverá ocorrer também nos cargos de diretor-executivo, da auditoria interna e da corregedoria. Além disso, 30% dos cargos são reservados para as mulheres.

Para Francine Fachinello, advogada tributarista e pesquisadora, “um dos principais desafios é a governança do Comitê Gestor. A centralização excessiva pode comprometer a autonomia dos entes federativos, resultando em distorções na distribuição das receitas. A transparência e os critérios de decisão desse comitê também precisam ser claramente definidos, evitando disputas políticas e insegurança jurídica que prejudiquem a arrecadação e a alocação dos tributos”.

Crime de responsabilidade

O projeto prevê que o presidente do Comitê Gestor poderá ser enquadrado por crime de responsabilidade quando não prestar contas do exercício anterior no prazo definido e não prestar informações solicitadas por escrito pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado, entre outros atos previstos na lei que trata dos crimes de responsabilidade (Lei 1.079, de 1950).

Os procedimentos de destituição seguirão o rito do impeachment para o presidente da República, que prevê formação de comissão especial para emitir relatório sobre a denúncia e votação da autorização pelo Plenário com quórum mínimo de dois terços dos deputados federais para que o processo siga ao Senado, onde o afastamento também tem de ser votado pelo Plenário com o apoio de dois terços dos senadores.

Financiamento

O comitê será financiado pela própria arrecadação do imposto. Porém, de 2025 a 2028 a União vai arcar com as despesas de instalação do comitê com o montante de até R$ 3,8 bilhões. Isso porque até lá a cobrança do IBS ainda estará em período de teste, com uma alíquota de 0,1%. Após 2029, a cobrança do IBS será implementada gradualmente até 2033, quando o imposto substituirá definitivamente o ICMS e o ISS.

O percentual da arrecadação do IBS para financiar as atividades do comitê será decrescente no período de 2026 a 2032, uma vez que o imposto será implementado gradualmente. O percentual do IBS destinado às atividades do comitê passa gradualmente de 100% em 2026 até 0,5% em 2032. A partir de 2033, o percentual será de no máximo 0,2% do produto da arrecadação do IBS.

Receita

O projeto introduz conceitos para diferenciar a receita obtida com o IBS em diferentes etapas. A receita inicial de cada ente federativo será o valor arrecadado, descontados os créditos apropriados pelo contribuinte no processo de não cumulatividade. Desse valor, será descontado o que foi destinado à devolução de tributos para consumidor de baixa renda (cashback), segundo percentual a ser fixado pelo comitê em cada período de distribuição mensal, com base em estimativas do valor da devolução geral do IBS e do valor total da receita inicial dos entes federativos.

O percentual será o mesmo para todos os estados, o Distrito Federal e os municípios. Na prática, isso significa que o cashback geral do IBS será financiado por todos os entes federativos, na proporção de sua participação na receita inicial. Outro ajuste da receita inicial será quando o ente federativo fixar alíquota do IBS (alíquota padrão) diferente da alíquota de referência (fixada pelo Senado Federal no período de transição de 2029 a 2033).

No caso da alíquota padrão ser superior à alíquota de referência, o aumento de receita será deduzido da receita inicial do ente federativo. Se a alíquota padrão for inferior à de referência, haverá redução da receita inicial decorrente da aplicação de alíquota menor. Segundo o governo, esse ajuste é necessário por causa da norma da Emenda Constitucional 132 sobre a transição na distribuição dos recursos. A repartição usará a arrecadação com base nas alíquotas de referência.

Outros ajustes deverão ocorrer em razão de créditos presumidos concedidos pela legislação. Depois de todos os ajustes, o valor encontrado servirá de base para o cálculo da distribuição na fase de transição para evitar perdas de receita. No período de 2029 a 2077, percentuais de 80% (2029 a 2032), 90% (2033) e gradativamente menores (2034 a 2077) serão retidos para redistribuição com esse objetivo.

Depois dessa primeira retenção, outros 5% (de 2029 a 2077) serão separados para os entes federativos com maior perda de participação relativa na receita. De 2078 a 2097, o percentual será reduzido gradativamente até zerar.  Em ambas as retenções, o arrecadado com multas de ofício impostas pelo não pagamento de tributos ou descumprimento de obrigações acessórias (entrega de declarações, por exemplo) ficará de fora.

Créditos de ICMS

O PLP 108/2024 também define o destino dos saldos credores do ICMS existentes nas empresas. Como o ICMS deixará de existir a partir de 2033, o projeto permite que as empresas peçam a compensação desses créditos com valores devidos do mesmo tributo se o estado concordar. Outra opção é compensar valores no IBS a pagar. A transferência a terceiros também será possível, mas a empresa que os recebe poderá utilizá-los somente para compensar ICMS ou IBS.

Caso o pedido de compensação não tenha sido analisado pela administração tributária dentro do prazo (24 meses ou, se mercadoria para ativo permanente, 60 dias), a transferência será chamada de tácita e somente poderá ocorrer a partir de 1º de janeiro de 2038.

Caso nenhuma hipótese de compensação seja possível, o titular do crédito poderá pedir ressarcimento a ser pago em 240 parcelas mensais. No entanto, o governo terá direito de atrasar o pagamento do mês em até 90 dias sem qualquer acréscimo, que começará depois desse prazo proporcionalmente à taxa Selic.

Penalidades

No Art. 59 estão previstas 37 condutas ilícitas que podem levar os contribuintes a sofrer diversas sanções e penalidades. Pelo texto, a falta de pagamento do IBS resultará em multa de 75% sobre o valor do imposto devido ou do crédito registrado indevidamente. Todos que tenham concorrido para a prática da infração tributária poderão responder conjuntamente. Já o valor do crédito tributário estabelecido será corrigido por juros de mora equivalentes à taxa Selic mensalmente e multa de mora de 0,33% ao dia (limitada a 20% do valor do IBS).

Além de multas aplicáveis sobre o valor da operação irregular, o texto que tramita no Senado criou a Unidade Padrão Fiscal do IBS (UPF/IBS), com valor unitário de R$ 200, atualizado mensalmente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Certas infrações, como o embaraço à ação fiscal ou instalação de sofwtare de fraude do imposto, por exemplo, implicam em multa de 50 UPF/IBS. 

Lucas Ribeiro, CEO da Roit, orienta que as empresas fiquem atentas à penalidades bastante severas, tais como:

  • Quem emitir documento com falta de qualquer requisito da legislação do IBS ou de forma insuficiente ou incorreta está sujeito ao pagamento de 5 UPF/IBS por infração, limitado a 40% do valor do IBS devido na operação;
  • O cancelamento de documento fiscal ou informação eletrônica do registro da operação após a ocorrência do fato gerador implica em uma penalidade de  20% do valor da operação; 
  • Cancelar, após o prazo previsto na legislação do IBS, documento fiscal eletrônico relativo à operação não ocorrida, vai gerar penalidade de  10% do valor da operação; 

“Estes são apenas alguns dos pontos que merecem atenção no que diz respeito às multas neste projeto”, aponta Lucas Ribeiro. Além disso, o advogado tributarista lembra que a lei e todas as suas disposições entram em vigor já na publicação da lei.

Descontos

As multas aplicadas com lançamento de ofício poderão ser pagas com redução de 50% se o pagamento integral do crédito tributário (principal mais juros e multas de mora) ocorrer no prazo previsto para apresentar impugnação contra a administração. O desconto cai para 25% se o pagamento ocorrer após esse prazo e antes da sua inscrição em dívida ativa. Para contribuintes que participem de programa de conformidade estabelecido pelo comitê gestor, os percentuais aumentam, respectivamente, para 60% e 35%.

Contencioso administrativo

O processo administrativo tributário do IBS será totalmente eletrônico desde a impugnação. O processo terá três etapas de julgamento: primeira instância, instância recursal e instância de uniformização da jurisprudência. Todas realizadas por servidores de carreira dos fiscos, com representação paritária entre o conjunto de estados e o conjunto de municípios. A Associação Nacional de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite) está pedindo a inclusão de uma emenda garantindo a “instituição e manutenção da Escola Nacional de Tributação, responsável por contribuir com o processo de formação e aprimoramento dos operadores do novo arcabouço legal”, explica Rodrigo Spada, presidente da entidade.

Outras medidas importantes sobre o contencioso administrativo tributário do IBS são a adoção de rito sumário para créditos tributários de baixo valor ou em razão da menor complexidade da matéria; a suspensão do curso do prazo processual no recesso entre 20 de dezembro e 20 de janeiro e o prazo de dez dias para a realização de atos, quando não houver outro prazo expressamente previsto.

No entanto, na análise do advogado tributarista Hamilton Dias de Souza, “a estrutura do comitê gestor privilegia a União e afeta a estrutura da nossa federação”.

Conforme explica, primeiro porque a representação nos comitês de harmonização, essenciais para estabelecer as regras comuns do IBS/CBS e equilibrar os interesses da União, dos Estados e dos Municípios, é indireta, feita por meio de indicações do Presidente do Comitê Gestor.  “Em segundo lugar, porque a distribuição de poder é desigual. A União possui uma estrutura monolítica, com interesses alinhados e representação de 50% nos comitês, enquanto estados e DF com dois representantes (25%), e os mais de 5.570 Municípios, também com dois representantes (25%), compartilham os outros 50%”, aponta.

Transmissão de bens

Outro tema tratado pelo projeto é o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD). Hoje, o tributo é regulado por leis estaduais, com alíquotas e regras diferentes.

Conforme diretrizes da Emenda 132, os estados e o Distrito Federal seguem com autonomia para fixar as alíquotas, mas as alíquotas máximas serão definidas pelo Senado e incidirão de forma progressiva, de acordo com o quinhão ou valor da doação recebida por pessoa. Caberá a lei estadual específica definir o grande patrimônio, que deverá ser tributado pela alíquota máxima aprovada pelo Senado.

O imposto municipal cobrado na venda de imóveis (ITBI) também aparece no projeto. Atualmente, não há unanimidade entre os municípios sobre o momento de exigência do tributo, se na escritura ou no registro do imóvel. O texto aprovado pela Câmara permite aos municípios a aplicação de alíquota menor que a incidente quando do registro da escritura se o contribuinte antecipar o pagamento para a data da assinatura da escritura no cartório de notas. Isso valerá inclusive para os contratos de promessa de compra e venda do imóvel (na planta).

O texto final aprovado na Câmara retirou a incidência do ITCMD nas seguintes situações:

  • Aportes financeiros capitalizados sob a forma de planos de previdência privada – o que inclui o Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL) e o Plano Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL).
  • Atos societários que resultem em benefícios desproporcionais aos sócios que tiverem sido praticados por liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação, o que inclui a distribuição desproporcional de dividendos, a cisão desproporcional e o aumento/redução de capital a preços diferenciados (envolvendo pessoas vinculadas).

O PLP 108/24 também determina ainda que a base de cálculo do ITBI seja o valor venal, e não o valor de venda, como é hoje. O valor venal é definido no texto como o valor pelo qual o bem seria negociado à vista em “condições normais de mercado”, considerando alguns critérios estabelecidos no próprio texto.

Iluminação Pública

Além disso, o projeto altera o Código Tributário em razão da permissão dada pela Emenda 132 para os municípios aumentarem a contribuição para iluminação pública, cobrada na conta de luz, para bancar serviços de monitoramento de via. Segundo o texto aprovado, os recursos poderão servir para implantar, expandir e melhorar sistemas de monitoramento para segurança e preservação de ruas públicas.


Esta reportagem foi publicada anteriormente na 3ª edição da Revista da Reforma TributáriaClique aqui para assinar e receber as próximas edições.

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