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Pós-reforma: presunções legais e a estrutura do regime especial de fiscalização

Por Gabriela Bittencourt Zanella e Rodrigo Schwartz

A Emenda Constitucional nº 132/2023 e a Lei Complementar nº 214/2025 instituíram um novo modelo de tributação sobre o consumo no Brasil. Trata-se de uma inovação que vem acompanhada de impactos significativos não apenas sobre a sistemática de apuração, mas também sobre os mecanismos de fiscalização e controle.

Entre as disposições de destaque, o art. 335 da LC nº 214/2025 introduz diversas presunções legais de omissão de receita e ocorrência de fato gerador do IBS e da CBS. Essas presunções, embora relativas (juris tantum), buscam fortalecer o uso das técnicas presuntivas, colocando à disposição das autoridades fazendárias ferramentas para exigir o IBS/CBS em situações de difícil ou impossível alcance. A norma prevê que, em situações de inconsistência ou ausência de documentação, presume-se a ocorrência da operação tributável com base em indícios objetivos extraídos das movimentações de entrada e saída de bens, prestações de serviços ou incompatibilidades patrimoniais.

A técnica da presunção não é inédita no ordenamento jurídico brasileiro; a  legislação federal e as legislações estaduais já estabelecem mecanismos  similares. A inovação, objeto de reflexão neste texto, decorre do fato de o art.  335 estabelecer, de forma sistematizada e vinculada à apuração dos novos  tributos, um conjunto de hipóteses presuntivas que balizarão a atuação fiscal.

Trata-se de novo paradigma na fiscalização tributária, com impacto direto na dinâmica da prova e no compliance das empresas.

A evolução digital dos fiscos, combinada com o acesso amplo a bases de dados  públicas e privadas, poderá tornar a aplicação das presunções quase que  mecânicas, potencializando a lavratura de autos de infração com base em  padrões detectáveis por parâmetros. Esse cenário exigirá dos contribuintes um cuidado ainda mais rigoroso, em tempo real, com integração absoluta entre  contabilidade, faturamento e deveres instrumentais. Veja-se, por exemplo, a hipótese contida no inciso IV, que estabelece a possibilidade de se presumir, pela falta de pagamentos escriturados, que houve operações sujeitas ao

IBS/CBS que não foram oferecidas à tributação. Trata-se de um indício que pode  ser representativo de alguma irregularidade, mas que, se isoladamente considerado para sustentar uma autuação, pode gerar graves distorções.

O novo modelo carrega riscos, sendo importante relembrar por que existem as  presunções. Os mecanismos presuntivos devem, sempre, ser utilizados como  uma hipótese residual e exclusivamente nos casos em que não é possível, pela  via fiscalizatória comum, alcançar os fatos omitidos das autoridades fazendárias, o que sugere que seu uso deve ser ponderado, razoável e sempre  oportunizando a dialética com o contribuinte. A atuação do fisco não pode  dispensar a fundamentação individualizada, sob pena de transformar a  fiscalização em mero automatismo sancionatório, incompatível com o devido  processo legal substantivo.

Nesse contexto, também é digno de nota o Regime Especial de Fiscalização REF, previsto pelo art. 338 e seguintes. Lá, consta uma hipótese de “ajuste de  conformidade”, permitindo ao contribuinte regularizar inconsistências antes da  lavratura do auto de infração, com vantagens na redução de penalidades. Trata se de um mecanismo que valoriza a autorregularização e tende a reduzir o contencioso.

O REF pode ser instaurado diante da constatação de inconsistências relevantes  ou inadimplência reiterada, estabelecendo um regime de vigilância diferenciada.  O regime pode acarretar restrições operacionais severas, como bloqueios em  sistemas eletrônicos de apuração, monitoramento prévio de operações e  limitação do direito a compensações tributárias, mesmo antes da constituição  definitiva do crédito tributário.

A implementação do REF, ainda que justificada como medida vocacionada à  proteção do interesse público, seguramente enseja preocupações legítimas. A  imposição de restrições prévias, com efeitos econômicos imediatos, antes do  exaurimento da discussão administrativa, tensiona princípios constitucionais  como a ampla defesa, o contraditório e o livre exercício da atividade econômica.

Na prática, o REF poderá funcionar como um instrumento de constrição indireta,  impondo ao contribuinte ônus desproporcionais para forçá-lo à regularização ou  à adesão a programas de transação.

Note-se que o art. 339, ao prever que o ajuste de conformidade — regularização espontânea de inconsistências — pode encerrar o procedimento de fiscalização e evitar a imposição do REF, cria um incentivo relevante à autorregularização.

Em certas situações, contudo, essa possibilidade poderá ser percebida como instrumento de pressão, especialmente se não forem assegurados transparência, critérios objetivos e adequada comunicação com o contribuinte.

Aliado a tudo isso, os fiscos federal, estaduais e municipais executarão o REF de maneira compartilhada (art. 340). É um novo patamar de integração entre os fiscos, o que deve exigir uma atuação coordenada e coesa, exigindo um alto padrão de procedimentos e governança institucional. Sem esses cuidados, haverá sérios riscos de sobreposição de atuações, conflitos de competência e insegurança jurídica. Que fique claro: é importante que o Fisco disponha de ferramentas para combater a sonegação. Mecanismos de integração e controle são bem-vindos para o bom funcionamento da arrecadação e para a convivência do Fisco com os contribuintes. O que se está a advertir é que o uso das presunções legais de maneira cômoda e irrefletida, aliado ao forte poder dos instrumentos previstos na reforma tributária dos quais dispõe o Fisco, reduz a dialeticidade do contribuinte, podendo-lhe gerar situações graves.

Aliado a tudo isso, os fiscos federal, estaduais e municipais executarão o REF de maneira compartilhada (art. 340). É um novo patamar de integração entre os fiscos, o que deve exigir uma atuação coordenada e coesa, exigindo um alto padrão de procedimentos e governança institucional. Sem esses cuidados, haverá sérios riscos de sobreposição de atuações, conflitos de competência e insegurança jurídica. Que fique claro: é importante que o Fisco disponha de ferramentas para combater a sonegação. Mecanismos de integração e controle são bem-vindos para o bom funcionamento da arrecadação e para a convivência do Fisco com os contribuintes. O que se está a advertir é que o uso das presunções legais de maneira cômoda e irrefletida, aliado ao forte poder dos instrumentos previstos na reforma tributária dos quais dispõe o Fisco, reduz a dialeticidade do contribuinte, podendo-lhe gerar situações graves.


Gabriela Bittencourt Zanella é mestre em Direito pela UFSC. Especialista em Direito Tributário pela PUC/SP e pelo IBET. Autora de livro e de artigos publicados em revistas especializadas. Advogada sócia da Menezes Niebuhr, com atuação destacada em contencioso.

Rodrigo Schwartz é mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Especialista em Direito Tributário pelo IBET, com extensão em planejamento tributário pelo IBMEC. É advogado da Menezes Niebuhr.


Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.

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