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Reforma tributária do consumo e a conformidade por design: o Brasil no limiar da tributação assistida

Fellipe Guerra

Por Fellipe Guerra

A Emenda Constitucional nº 132/2023 e a Lei Complementar nº 214/2025 inauguraram mais do que uma reforma tributária. O que se desenha é uma ruptura com o modelo de autodeclaração e fiscalização posterior que caracterizou o sistema brasileiro desde sua origem. A substituição de ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins por IBS, CBS e Imposto Seletivo representa a camada visível de uma transformação que altera o próprio sentido da obrigação tributária.

O conceito de conformidade por design, introduzido pela OCDE em 2012, encontra no Brasil um laboratório de implementação em escala continental. Mas a materialização desse conceito em normas jurídicas expõe tensões que merecem exame detido.

A ressignificação dos documentos fiscais eletrônicos

O artigo 46 da Lei Complementar nº 214/2025 estabelece que a apuração assistida do IBS e da CBS será realizada com base nos documentos fiscais eletrônicos emitidos pelo contribuinte. Embora, à primeira vista, essa previsão possa parecer trivial ou meramente descritiva da realidade já consolidada com o uso do SPED, ela traz uma mudança significativa no papel jurídico dos documentos fiscais no sistema tributário brasileiro.

O Documento Fiscal Eletrônico (DFe) deixa de exercer apenas uma função probatória, acessória ao processo de apuração, para tornar-se elemento central da constituição da obrigação tributária. A sistemática da apuração assistida atribui aos dados informados no momento da emissão do documento fiscal um efeito jurídico imediato: é com base nessas informações que o sistema calculará automaticamente os valores devidos e os créditos apropriáveis.

Essa nova configuração eleva a responsabilidade do contribuinte na etapa de emissão do DFe, pois reduz a margem para erros, omissões ou inconsistências. Ainda que os instrumentos de correção continuem formalmente disponíveis, como a carta de correção, a nota complementar ou o cancelamento, na prática, quando o tributo já tiver sido apurado com base em dados incorretos, haverá forte risco de pagamento indevido, cuja restituição ou complementação dependerá de procedimentos adicionais.

É essencial destacar que o DFe passa a cumprir duas funções distintas. A primeira é viabilizar o recolhimento do tributo incidente sobre a operação, inclusive por meio do mecanismo de split payment, em que parte do valor da transação é retida automaticamente e destinada ao ente arrecadador no momento da liquidação financeira. Ou seja, a informação registrada no DFe pode gerar efeitos financeiros diretos e imediatos, com a segregação e o recolhimento do IBS e da CBS no curso natural da operação.

A segunda função, de natureza sistêmica e contínua, é alimentar a apuração assistida. As informações prestadas em cada DFe são acumuladas e processadas pela administração tributária, permitindo a consolidação do montante total de tributos devidos e a verificação dos créditos passíveis de apropriação. Trata-se da materialização do princípio da não cumulatividade em ambiente digital, no qual os registros eletrônicos não apenas documentam a operação, mas constroem, progressivamente, a base da obrigação tributária ao longo do tempo.

Assim, a qualidade, a consistência e a tempestividade dos dados fiscais informados passam a ser determinantes para a correta apropriação dos créditos, o cálculo dos valores devidos e a integridade do sistema como um todo. A conformidade não se verifica apenas no resultado da apuração, mas no próprio fluxo de informações que sustenta, em tempo real, o funcionamento do novo modelo tributário. Dessa forma, repito minha célebre frase: as informações nascem nos documentos fiscais, transitam pela escrituração e desaguam na contabilidade.

Split payment: entre a eficiência arrecadatória e a asfixia do capital de giro

O mecanismo de recolhimento na liquidação financeira, previsto nos artigos 31 a 35 da Lei Complementar nº 214/2025, também constitui um dos pilares da arquitetura tecnológica que sustenta a reforma tributária sobre o consumo. Trata-se de um instrumento essencial para viabilizar, na prática, o modelo de apuração assistida e garantir maior aderência entre o momento da ocorrência da operação econômica e a realização do recolhimento tributário. Sem a efetiva implementação do split payment, a promessa de simplificação que sustenta a reforma perde parte substancial de sua funcionalidade.

Ao prever que o tributo será recolhido no instante da liquidação financeira da operação, isto é, no momento do pagamento, o modelo rompe com a lógica vigente, na qual o recolhimento ocorre em momento posterior, conforme periodicidade de apuração. Essa antecipação do efeito financeiro do tributo, transformando a operação de pagamento em gatilho imediato de recolhimento, implica mudança de paradigma na relação entre o ciclo operacional das empresas e a exigibilidade da obrigação tributária.

Isso significa impacto sobre o fluxo de caixa empresarial, especialmente sensível para as micro, pequenas e médias empresas, que, em muitos casos, utilizam os recebíveis de vendas para custear obrigações operacionais imediatas, como folha de pagamento, fornecedores e encargos financeiros. A retenção automática do IBS e da CBS no momento do pagamento pode comprometer essa dinâmica, gerando desequilíbrios financeiros que, se não forem adequadamente tratados, comprometerão a sustentabilidade do regime.

Essa preocupação não é meramente teórica. Estudo empírico conduzido pela União Europeia em 2017, ao analisar os efeitos da implementação do split payment, demonstrou que o modelo provocou impacto negativo relevante sobre a liquidez das empresas, com especial gravidade para os pequenos negócios. A pesquisa revelou que a compulsoriedade do mecanismo, quando não acompanhada de medidas compensatórias ou flexibilizações regulatórias, reduz a autonomia financeira das empresas e aumenta a dependência de capital externo, o que impõe custos operacionais adicionais.

A conclusão do estudo é clara ao apontar que o split payment, embora eficiente sob a ótica arrecadatória, exige contrapesos normativos para não comprometer a atividade econômica, especialmente em economias com menor grau de bancarização e maior sensibilidade ao fluxo de caixa.

Além dos efeitos econômicos, o modelo previsto na legislação brasileira atribui papel operativo central às instituições financeiras e de pagamento, encarregadas da retenção e do recolhimento automático dos tributos incidentes. Conforme o artigo 31 da Lei Complementar nº 214/2025, tais instituições assumem a função de intermediadoras da arrecadação. Embora a norma estabeleça que a responsabilidade primária pelo tributo permanece com o contribuinte, a atuação desses entes privados no processo suscita reflexões sobre os limites da delegação de funções fiscais a terceiros não integrantes da administração tributária.

Dessa forma, embora o split payment se apresente como instrumento de eficiência arrecadatória e de integração fiscal em tempo real, seu desenho normativo demanda atenção redobrada quanto à preservação da função econômica da empresa, à previsibilidade do fluxo de caixa e à delimitação das competências atribuídas a entes privados na cadeia arrecadatória.

A simplificação através do uso intensivo de tecnologia

A apuração assistida promete eliminar a complexidade do cálculo tributário para o contribuinte. Mas essa promessa esconde uma transferência, não uma eliminação, da complexidade. O que antes era resolvido internamente pelas empresas passa a depender de uma infraestrutura tecnológica cuja falha pode paralisar toda a economia.

Há ainda o problema da auditabilidade dos algoritmos. Se o cálculo é realizado por sistemas da administração tributária, como garantir que as regras programadas correspondem fielmente às normas legais? A experiência internacional mostra que a automação fiscal frequentemente congela interpretações administrativas que deveriam estar sujeitas ao contraditório.

Entre 2026 e 2033, contribuintes operarão simultaneamente sob dois regimes distintos. Essa dualidade não é apenas operacional, é conceitual. Empresas precisarão manter controles paralelos com lógicas contraditórias: uma baseada em declarações periódicas e outra em captura contínua de dados.

O Comitê Gestor Nacional, previsto no artigo 480 da LC 214/2025, concentrará poderes normativos e operacionais sem precedentes no federalismo brasileiro. A gestão unificada de tributos de competência compartilhada cria um ente suprafederativo cujos atos escapam aos mecanismos tradicionais de controle.

Como garantir que as decisões desse comitê reflitam os interesses equilibrados de todos os entes federados? A lei estabelece critérios de representação, mas silencia sobre mecanismos de accountability e revisão de decisões.

Entre a promessa e o risco sistêmico

A reforma tributária brasileira aposta na tecnologia como solução para problemas estruturais do sistema fiscal. Mas tecnologia não é neutra: ela carrega em seu código as escolhas políticas de seus programadores. A conformidade por design pode tanto simplificar o cumprimento das obrigações quanto criar uma camisa de força digital da qual será impossível escapar.

O teste definitivo do novo sistema não será sua capacidade de arrecadar, mas sua resiliência diante do erro, da exceção, do caso não previsto. Sistemas automatizados são eficientes na gestão da normalidade, mas frágeis diante da complexidade do mundo real.

A verdadeira questão não é se o Brasil está preparado tecnologicamente para essa transição, mas se suas instituições jurídicas estão prontas para lidar com um mundo onde o algoritmo é lei e a lei é código. Nesse novo paradigma, o direito de defesa do contribuinte pode ser reduzido a formulários digitais, e a justiça fiscal, ao entendimento do sistema.

A reforma promete um futuro de conformidade automática e simplificação radical. Mas é preciso questionar se, nessa busca pela eficiência, não estamos construindo uma prisão digital da qual nem mesmo o legislador futuro conseguirá nos libertar. Afinal, é mais fácil revogar uma lei do que reescrever milhões de linhas de código distribuídas em sistemas interdependentes.

O sucesso da reforma dependerá menos da sofisticação tecnológica e mais da sabedoria em preservar espaços de flexibilidade, contestação e adaptação. Porque, se a história do direito tributário ensina algo, é que a realidade econômica sempre encontra caminhos que o legislador não previu e que o algoritmo não consegue processar.

Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos!


Fellipe Guerra é Contador e Advogado, Presidente do Conselho Regional de Contabilidade do Ceará (CRCCE) e da Comissão de Direito Contábil da OABCE. Pós-Doutor em Contabilidade pela USP e em e-Government pela Universidade Fernando Pessoa (UFP) em Portugal; Doutor em Ciência da Informação pela UFP-PT; Mestre em Administração e Controladoria pela UFC e Especialista em Direito e Processo Tributário.

Autor de 16 livros nas áreas de Contabilidade e Gestão Tributária, é Membro da Academia de Ciências Contábeis do Ceará, Coordenador de Pós-Graduação no IPOG Brasil e Sócio da Compliance Contadores e da Guerra Advogados.


Referências

BRASIL. Lei Complementar nº 214, de 18 de janeiro de 2025. Dispõe sobre o Imposto sobre Bens e Serviços – IBS e a Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ed. extra, p. 1–19, 18 jan. 2025.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023. Altera o Sistema Tributário Nacional e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 20 dez. 2023.

ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Tax compliance by design: achieving improved SME tax compliance by adopting a system perspective. Paris: OECD Publishing, 2014. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1787/9789264223219-en. Acesso em: 15 jun. 2025.

TEIXEIRA, Alexandre Alkmim. To Split or not to Split: o Split Payment como Mecanismo de Recolhimento de IVA e seus Potenciais Impactos no Brasil. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 50, p. 27–46, 1º quadrimestre de 2022. Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT.


Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.

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