
Por Fábio Rodrigues
A Reforma Tributária sobre o consumo, consagrada na Lei Complementar 214/2025, trouxe uma inovação que poucos fora do meio técnico perceberam, mas que muda radicalmente a vida das empresas: a nota fiscal eletrônica passou a ter caráter de confissão de dívida.
Até então, o cenário era outro. O contribuinte só “confessava” seu débito em declarações como a DCTF (tributos federais), o EFD-ICMS/IPI (tributos estaduais) e as declarações municipais (ISS). A jurisprudência era clara: apenas a entrega dessas declarações consolidava o crédito tributário. A nota fiscal, por mais oficial que fosse, era apenas documento de registro.
Agora, com o artigo 60 da LC 214/2025, toda vez que uma empresa emitir uma nota, irá declarar e confessar ao mesmo tempo o valor de IBS e CBS. Em outras palavras: a obrigação tributária nasce no ato da emissão, não mais em uma declaração posterior.
O lado positivo
Não há dúvida de que se trata de um salto em transparência e simplificação. Ao alinhar a legislação brasileira às práticas internacionais de IVA, reduzimos a distância entre a operação econômica e a constituição do crédito tributário. O Fisco ganha previsibilidade e poder de fiscalização em tempo real. O contribuinte correto, que já controla seus dados e sistemas, terá um processo menos burocrático.
Além disso, a mudança é coerente com a lógica de um IVA moderno: se o tributo incide sobre o consumo, é natural que a própria nota que materializa a operação seja também o documento que consolida o débito.
O lado sombrio
Mas há riscos — e grandes: se antes a empresa ainda podia corrigir falhas entre a nota emitida e a declaração entregue, agora cada erro de cadastro, classificação fiscal ou regra de tributação será erro confessado. A NF deixou de ser só um reflexo da operação para se tornar o próprio ato jurídico de reconhecimento da dívida.
Isso significa que uma falha sistêmica, um código de produto mal configurado ou um simples equívoco operacional pode ser lido, pelo Fisco, como confissão inequívoca. E, como sabemos, contestar depois em instâncias administrativas ou judiciais não é tarefa simples nem barata.
Há ainda uma discussão jurídica latente: quando começa a contar o prazo de prescrição para a cobrança do tributo? Até aqui, entendia-se que era a partir da entrega da declaração. Agora, com a confissão embutida na nota, é plausível defender que o marco inicial seja a data de emissão da NF. Isso abre espaço para novos contenciosos e teses tributárias.
O que as empresas devem fazer
Essa mudança exige das empresas algo que vai além de tecnologia: cultura de compliance em tempo real, validação prévia de cada NF antes da autorização, conciliações diárias entre sistemas de venda, pagamento e emissão fiscal, e treinamento de times comerciais, fiscais e de TI, para entender que o erro deixou de ser apenas “operacional”, sendo agora jurídico e financeiro.
Se não houver investimento em processos robustos e automação, muitas companhias descobrirão, tardiamente, que o débito já estava confessado na hora da venda.
Conclusão
A transformação da nota fiscal em confissão de dívida pode ser vista como um avanço civilizatório ou como uma armadilha silenciosa. Avanço porque simplifica e aproxima o Brasil de modelos internacionais. Armadilha porque transfere para a ponta — para a empresa, no calor da operação — a responsabilidade final de constituir seu próprio passivo tributário.
Em um país onde erros cadastrais e instabilidades tecnológicas são comuns, o risco é evidente. O futuro dirá se essa inovação será lembrada como símbolo de eficiência ou como mais um capítulo de insegurança jurídica.
De uma coisa não há dúvida: a nota fiscal nunca mais será a mesma.
Fábio Rodrigues é mestre em Ciências Contábeis e sócio da BSSP Consulting.
Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.