
Por Márcio Costa
Com o Projeto de Lei 68/24, que será o pilar fundamental para a tomada de decisões, submetido à sanção da Presidência da República, damos um passo crucial na construção de um novo modelo de tributação sobre o consumo no país. Esses avanços foram adiados por décadas, durante os quais a tão sonhada reforma foi pautada diversas vezes — como no caso da PEC nº 233/2008 —, mas só se concretizou com a Emenda Constitucional 132/2023. Parte dessa legislação ganhará aplicabilidade com a regulamentação, que já está bem encaminhada.
É certo que só iremos efetivamente ter a totalidade da reforma implementada em 2033, ou seja, os impactos não são imediatos, entretanto em 2026, se inicia a jornada no qual se “confia” esse processo, e aqui já faço esse trocadilho não por um acaso, mas para fazer alusão ao título deste artigo, no qual faço um cotejo para um dos programas estruturado pela Receita Federal do Brasil, o Confia (PLP 15/2024) que estabeleça novos parâmetros para uma saudável e salutar relação entre fisco x contribuinte, com o objetivo de promover: segurança jurídica; redução da litigiosidade; melhoria do ambiente de negócios e a conformidade tributária.
Nesse sentido, a pergunta é tempestiva e apropriada: a reforma tributária garantirá a harmonização nesse contexto de novas perspectivas de conformidade, sobretudo com a estabilização das normas e das interpretações uniformizadas pelo Comitê Gestor?
Serão preservadas as garantias centrais da reforma tributária, que visam mitigar as distorções causadas pela multiplicidade de tributos e consequentemente inúmeras normas?
Posto que as estrutura basilares e os objetivos que nortearam a “Reforma Tributária Possível” foram preservadas, quais sejam: Simplificação Tributária, tendo o objetivo de eliminar redundâncias e tornar mais fácil a apuração; Neutralidade Econômica, tendo como cerne que a tributação do consumo interfira o quanto menos, nas decisões econômicas-financeiras das empresas; Transparência Fiscal, como garantia de um sistema inteligível a todos e que remete a Justiça Tributária; Cooperação, Defesa ao Meio Ambiente, Eficiência e Competitividade se somam a estes objetivos. Os próximos dois anos (2025 e 2026) serão cruciais para solidificar esses pilares.
“Hoje, convivemos com um verdadeiro cipoal de normas que tangenciam a tributação sobre o consumo.”
É justamente nesse período em que as preocupações redobram, pelo simples fato de que iremos adentrar na fase das normas de implementação da Reforma Tributária, como, por exemplo, a Portaria RFB nº 501/2024, além das famigeradas leis ordinárias. Sim, esta que, como espécie normativa contida no inciso III do artigo 59 da Constituição Federal de 1988, regula as matérias gerais, podendo ser aprovadas com um quórum por maioria simples ou relativa (+ da metade dos presentes) no Congresso Nacional, ou seja, espécie de lei que irá regular assuntos gerais ou abstratos, que carecem de serem operacionalização, permitindo a compreensão, na prática, de como os operadores do direito deverão aplicar, saindo da generalidade que por sua vez é característica regular da lei complementar, que instrumentaliza os preceitos contidos na Constituição Federal, no caso a EC 132/2023, mas cuja fama não é boa, justamente por distorcer ao longo dos tempos conceitos que até então se mostraram claros.
Hoje, convivemos com um verdadeiro cipoal de normas que tangenciam a tributação sobre o consumo. Ao abordar esse assunto, lembramo-nos do ilustre tributarista brasileiro Alfredo Augusto Becker, que cunhou a expressão “manicômio jurídico-tributário” para descrever a situação reinante no sistema tributário do país. O elevado grau de litígio sobre matérias tributárias no Brasil é reflexo direto da complexidade e da má qualidade das normas.
Em suma, a grande bandeira da reforma tributária, para os consumidores, é a promessa de um sistema mais transparente, com destaque para os impostos que antes eram embutidos no preço e que agora serão cobrados por fora destacado no documento fiscal. Já para as empresas, a transição exige atenção não só para a área de Tax, que literalmente terá que pôr em prática todas as premissas para bem apurar o nosso IVA-DUAL (CBS + IBS), mas também para todo um ecossistema operacional, podendo impactar as áreas de custos, logística, contratos, tecnologia e operações, o que redobra a responsabilidade dos nossos legisladores na feitura de leis, para que comportem uma abordagem clara, com a maturidade que espera para uma estrutura de governança tributária, com a devida Análise de Impacto Regulatório – AIR , contendo as informações e dados sobre os seus prováveis efeitos, para verificar a razoabilidade dos impactos que se propõe a norma legal.
Nesse sentido, primordial que se estabeleça sempre canais para discussões prévias, definindo e regulando as matérias com a presença de representantes da sociedade, em um plano democrático e conforme, afastando de vez a percepção de que com a mesma caneta que construímos algo positivo, esta mesma caneta venha destruir, ou deturpar o que demorou anos para se renovar, afinal essa é a grande máxima que encontramos ao estudar a evolução do Direito Tributário. Não é nenhum exagero dizer, que por mais que o sistema tributário precisasse ser reformado, poderia ser nos dias de hoje um sistema mais próximo do que se vislumbra com o nosso IVA-DUAL, haja vista as inúmeras leis ordinárias que ao longo dos anos desvirtuaram a vontade dos legisladores constituintes, assim como o nosso velho e atual Código Tributário Nacional – CTN, e aqui não estou a falar dos avanços tecnológicos, mas de questões mais simples que poderiam ser tratadas com cuidado de quem preza por um sistema com mais segurança jurídica, equânime e menos regressivo.
Sabíamos que ainda na fase de discussão das PECs nº 45 e 110, assim como outras propostas concorrentes, que muito do que se emendou na constituição, poderia ser feito por leis ordinárias, mas que tamanha a falta de credibilidade, se optou em mais uma vez mover todos os esforços para incluir em uma emenda, a EC 132/2023.
Um exemplo clássico, no qual podemos contextualizar essa percepção, diz respeito ao Princípio da Não Cumulatividade, sendo uma técnica de cálculo tributário que evita a cobrança em cascata de tributos sobre o faturamento, permitindo o direito ao crédito fiscal com base em insumos e bens adquiridos para revenda, garantindo a neutralidade no ciclo econômico e que Oxalá nos proteja, que o Split Payment venha a “confiar” esse creditamento, não sendo um entrave nesta conquista que é a Não Cumulatividade Plena.
O longo período de transição, que naturalmente irá trazer aperfeiçoamentos, carece de organização e consistências nos pilares que aqui busco harmonizar, seja entre o que se visa regulamentar para a reforma tributária sobre o Consumo, seja para um ambiente confiável entre todos, que se inicia no legislativo e que deve ir ao encontro das expectativas de um ambiente em “sintonia”, trazendo mais um trocadilho para mais um Programa de Conformidade Cooperativa Fiscal, o “Sintonia”, como mais um estímulo à conformidade tributária, mas que possa ser exequível, é claro!
Apesar da notória percepção de que a reforma tributária irá trazer simplificação para a tributação sobre o consumo no país, as exceções incluídas ao projeto inicial aprovada pelos parlamentares, em meio a discursões paralelas frente a aprovação de emendas parlamentares e o pacote fiscal, o que se viu nos seus últimos desfecho foi muito mais um debate político do que técnico, comprometendo em certa medida a qualidade da reforma, ainda que não tenha modificado de forma substancial, mas que trouxe pontos negativos e positivos, impactando sobretudo o ponto mais sensível na reforma que é a alíquota.
Dentre os pontos positivo e vai ao encontro do que se busca com os programas de estratégia para fomentar a conformidade, que seguiu no texto final, diz respeito a uma das mudanças feitas pelo parecer do relator no Senado, Eduardo Braga (MDB-AM), que prevê que, no primeiro ano de implementação do sistema (2026), não haverá recolhimento dos novos tributos. Será uma etapa de experimentação na qual as notas fiscais indicarão uma alíquota-teste da CBS e do IBS, mas sem cobranças. Não impactando em formação de preço, o que sem dúvida é um ato de cooperação e parceria, que reduz o custo de conformidade, nesse primeiro momento crucial para uma implementação sólida das novas bases.
Por outro lado, um debate que a bola ficou dividida, e que sem dúvida é um ponto de preocupação, diz respeito a lista de medicamentos. Listas, assim como as linhas de cuidados, tal qual como os produtos inseridos no Imposto Seletivo, abrem um campo de exceção que podem gerar problemas, seja de cunho classificatório, de quebra de isonomia, assim como sensíveis questões concorrenciais. Essas decisões políticas, devem ser melhor depuradas tecnicamente, o que acabou sendo um tanto aceleradas, dado a agenda mais uma vez apressada na Câmara dos Deputados.
De qualquer forma, a perspectiva é de um sistema tributário melhor do que se tem hoje, abandonando práticas nocivas não condizente com a economia contemporânea, do digital e da inteligência artificial que a cada dia vem dominando as operações entre as pessoas. É de suma importância que o trem permaneça nos trilhos, e que não se descarrilhe, pois temos muitos desafios pela frente, a ver o próprio PLP nº 108/2024, leis ordinárias a tratar de diversas questões que pairam sobre a reforma tributária, tais como determinar critérios, alíquotas, períodos de construção do split payment, dentre tantos outros.
A reforma tributária veio para reorganizar o sistema, nesse primeiro momento lançando luzes a tributação sobre o consumo, hoje considerado um sistema anacrônico. É de suma importância que tenhamos critérios bem delineados, para todas as questões que tendem a gerar contencioso, a princípio caminhamos bem, ressaltando o trabalho feito nas Comissões de Assunto Econômico e na Constituição e Justiça, que contribuíram bastante para o aperfeiçoamento e clareza de muitos pontos.
Sabemos o quanto é relevante e difícil o ato de legislar, onde se inclui muito estudo de projetos de lei, de viabilidade, isonomia, costuras políticas, lobbies envolvidos no processo, mas com a Reforma Tributária aprovada temos que mirar um futuro com previsibilidade, que as exceções inevitáveis não sejam uma cultura, mas sim fruto de muito debate, equilíbrio e coerência, sobretudo para não comprometer a eficiência de que tantos lutamos para chegar até a promulgação da lei complementar que irá regulamentar a reforma, vislumbrando o impacto na economia global, reposicionando e inserindo o Brasil, oportunidade tão idealizada por seus autores e economistas que tanto se debruçaram em fazer projeções de cenários, garantindo as empresas competitividade fiscal e justiça tributária.
Uma boa reforma da tributação sobre o consumo contribuirá significativamente para a conformidade de um sistema mais simples. Entretanto, a mudança que todos almejam, seja com esta ou outras reformas, é a mudança cultural, um dos alicerces dos programas de conformidade. Contudo, para isso ocorrer, o caminho é a interlocução com responsabilidade e transparência com os sujeitos da relação tributária. A Representação dos Contribuintes neste processo é essencial, para dirimir por completo esse vasto contencioso tributário, que hoje representa uma fatia relevante do PIB nacional.
Márcio Costa é ex-conselheiro e vice-presidente de Turma no Carf. Com mestrado em Ciências Contábeis pela Fucape Business School, é professor convidado na pós-graduação na Mackenzie/RJ.
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