Um direito que virou insegurança: as consequências da distorção na aplicação do tema 796/STF

O Plenário do Supremo – Foto via STF.

Por Caroline Martinez de Moura e Maristela Ferreira

O art. 156, §2º, I, da Constituição Federal prevê a imunidade do ITBI sobre bens incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, excetuando apenas as hipóteses em que a atividade preponderante da adquirente envolva compra, venda ou locação de imóveis.

A exceção ocorre quando há um valor excedente ao capital social, destinado à “reserva de capital” (subscrição com ágio). Nessa hipótese, o STF decidiu (Tema 796) que a imunidade não alcança tal excedente — apenas a parte que efetivamente compõe o capital social está protegida da tributação.

Entretanto, mesmo nos casos em que as sociedades integralizam imóveis exatamente pelo valor subscrito no capital social, sem sobras ou reservas, os municípios estão arbitrando unilateralmente um “valor venal” superior e exigindo o ITBI sobre esse suposto excedente.

Resumo da ‘ópera’: os municípios estão distorcendo o entendimento consolidado pelo STF no referido tema, para cobrar o ITBI sobre a diferença entre o valor por eles atribuído ao imóvel e o valor atribuído pelos sócios no ato translativo da propriedade, até mesmo quando não há qualquer excedente destinado a reserva de capital.

Infelizmente, juízes e tribunais vêm validando essa cobrança, sem observar que, na grande maioria dos casos concretos, a totalidade dos bens aportados foi destinada à integralização do capital subscrito!

De fato, o entendimento proferido pelo STF no Tema 796 está sendo aplicado de forma equivocada e ampliativa, pois os municípios e magistrados estão confundindo o “excedente destinado à reserva de capital” (parcela do imóvel que o STF admitiu como tributável) com a diferença entre valor declarado pelo contribuinte e o valor atribuído pelo Fisco.

É preciso interpretar o Tema 796 no contexto daquele caso concreto: lá, o valor total dos 17 imóveis transferidos à pessoa jurídica – valor atribuído pelo próprio contribuinte no ato societário correspondente – superava o capital social a ser integralizado. Ou seja, o próprio ato que constitui o fato gerador do tributo – transmissão da propriedade – já previa um valor superior à necessária para integralizar.

Bem diferente da situação que, com frequência, estamos vendo hoje: o fisco municipal atribui outro valor ao imóvel e, com isso, dá um “by pass” na imunidade constitucional. E pior: o faz sob o discurso de estar aplicando o Tema 796 do STF!!!!

Se essa interpretação prevalecer, cada integralização de imóvel em sociedades poderá se transformar em um passivo tributário inesperado, desestimulando planejamentos sucessórios, reorganizações societárias e novos investimentos.

Tal prática afronta o princípio da legalidade tributária, seja porque presume um “excedente” que inexistente no fato gerador, seja porque afronta o direito do contribuinte previsto no art. 23 da Lei nº 9.249/95, de integralizar o capital pelo valor declarado ou pelo valor de mercado (direito já consagrado, inclusive, no Tema 1113 do STJ).

O STF, em decisões mais recentes, já deixou claro que o contribuinte pode integralizar o bem pelo valor da sua declaração de imposto de renda ou pelo valor de mercado — e que essa escolha não pode ser desconsiderada pelo Fisco. Assim, não existe espaço para cobranças baseadas em avaliações unilaterais da prefeitura, que resultam em “excedentes” irreais.

O que está em jogo vai além de uma discussão técnica: trata-se de garantir segurança jurídica para empresários que utilizam imóveis na integralização de capital social. A imunidade do ITBI para essa hipótese, prevista na Constituição Federal, só pode ser afastada quando houver o tal “excesso” no próprio ato translativo da propriedade que constitui o fato gerador do tributo. Afinal, é sabido que a base de cálculo deve representar, invariavelmente, a quantificação numérica do fato gerador.

Portanto, a correta interpretação do Tema 796/STF impõe reconhecer que o ITBI não incide sobre integralizações de capital social que envolvam a mesma grandeza (o capital social a ser integralizado e o valor dos imóveis transferidos). Exigir o imposto com base no “excedente” estabelecido pelos municípios significa criar, por via interpretativa, uma nova hipótese de incidência desse tributo, não prevista na Constituição.


Maristela Ferreira de Souza Miglioli, advogada do Ciari Moreira Advogados. Maristelaatua nas áreas de Contencioso e Arbitragem, bem como em Tributário, tanto na esfera consultiva quanto contenciosa. É Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo e Bacharel em Direito pela mesma instituição.

Caroline Martinez de Moura, advogada do Ciari Moreira Advogados. Caroline atua nas áreas de Contencioso e Arbitragem, além de Tributário, com experiência tanto no âmbito consultivo quanto contencioso. É especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduou-se em Direito pela Universidade São Judas Tadeu.


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